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Arte Monumental Budista

O mais antigo monumento da arquitetura sagrada da Índia até hoje conhecido é o altar védico construído com tijolos sobrepostos. O seu equivalente búdico e jainico é a stupa, essa forma arquitetônica do budismo indiano, edificada, segundo as prescrições rituais, para os túmulos reais e os monumentos comemorativos espalhados pela Terra desde há milênios. Gautama Buda teria dito, a propósito dessas edificações, ao seu discípulo Ananda:

«Da mesma maneira que se cuida das cinzas de um rei dos reis, é necessário, igualmente, Ananda, cuidar das do Tathagata. Na encruzilhada de quatro caminhos, devem elevar ao Tathagata um chaitya (de chi, amontoar) e todos aqueles que o ornamentarem com grinaldas, perfumes e pinturas, ou que lhe dedicarem a sua veneração, ou ainda que, ao contemplá-lo, encontrarem a paz de alma, terão grande proveito e longa alegria... As pessoas que merecem um chaitya são quatro: o Tathagata e o «desperto perfeito»; aquele que «despertou» por ciência própria (paceka-boudha) , um verdadeiro discípulo do Tathagata ... Ao pensarem, Ananda, que está ali o monumento a um espírito desperto... muitas almas se vão sentir tranqüilas e felizes. E, como os seus corações estão apaziguados e satisfeitos, voltarão a renascer depois de mortas, quando o corpo estiver desfeito, na bem-aventurança do reino do céu. Eis a razão pela qual, Ananda, o Tathagata, (o desperto perfeito)... merece um monumento.»

Com estas palavras, Buda deu à stupa um significado novo e consagrou-o como o edifício cultual do futuro. Esses montículos não deveriam apenas abrigar almas ou espíritos, ou serem os receptáculos de relíquias e pedras preciosas possuidoras de virtude mágica: deviam ser monumentos para fazer lembrar às gerações futuras os pioneiros da humanidade e incita-las a seguir o seu exemplo. Assim, o chaitya, nome dado à stupa na sua origem, foi elevado de monumento aos mortos a memorial dos vivos. O seu significado deixou de ser apenas a conservação das cinzas funerárias, para se tomar no símbolo das sublimes conquistas do espírito que constituíam o centro da doutrina búdica, a doutrina da Iluminação. Essa a razão pela qual algumas das antigas stupas possuíam pequenos nichos triangulares, onde eram colocadas lamparinas de azeite, de modo que toda a parte superior ficava iluminada, dando a impressão de uma cúpula luminosa.
A stupa simboliza portanto o princípio universal da Iluminação (bodhi) e a eternidade do próprio iluminado, que ultrapassou as fronteiras do individual. A parte arquitetural mais importante da stupa, a cúpula maciça, é, aliás, a reprodução reduzida da abóbada celeste, que reúne debaixo dela tudo o que existe, a criação e a destruição, a morte e a vida. Isso explica que a cúpula tenha sido comparada ao ovo (anda) pelos primeiros budistas e referida, nos mais antigos textos lendários e mitológicos da Índia, como símbolo do princípio criador e sinônimo do Universo, enquanto o belvédere em forma de altar, no alto da cúpula (harmika), simboliza o sagrado, por cima do mundo, para além da morte e da vida.
Da harmika eleva-se um mastro metálico cuja base penetra profundamente na anda, com uma fileira de chattras (pára-sóis simbólicos) e, na ponta, um recipiente para a chuva que corresponde ao dos templos do hinduísmo. A cúpula, na origem, erguia-se diretamente sobre uma base redonda, com alguns metros de altura, cujo acesso se fazia por uma escada exterior e que servia às necessidades do culto. Mais tarde, foi suportada e alteada por uma parte cilíndrica (espécie de tambor) na base da qual se construíram degraus.
As stupas eram rodeadas por cercas de pedra (vedika), as quais, como os quatro pórticos (torana), imitam modelos antigos de madeira. As entradas estão voltadas para os quatro pontos cardeais, o que simboliza o espírito universal da Buda-dhamma (a doutrina de Buda), cuja reputação se espalha por todo o Universo. Essas entradas eram construídas de tal forma que, no seu conjunto, representavam os quatro ramos de um svaslika (cruz suástica), antigo símbolo do Sol; o eixo dessa cruz está situado no centro da stupa. Até as próprias práticas do culto (pradakshina palha), que se fazem da esquerda para a direita, correspondem ao movimento do Sol.
A forma arcaica da stupa, com a sua calote hemisférica largamente aberta quase ao nível da terra, simbolizava perfeitamente a doutrina de libertação deste mundo, ensinada por Buda. Assim, os países budistas que tinham adotado esta doutrina - a Hinayana - permaneceram fiéis a essa forma original durante um milênio. Não só os dagobas primitivos de Anuradhapura, na ilha de Ceilão, edificados entre o século III a. C. e o século III d. C., mas também os mais recentes de Polonnaruwa no século XII não se diferenciam essencialmente, exceto em algumas modificações ulteriores, das stupas de Bharhut e de Sanchi. As suas cúpulas são hemisféricas e a harmika conserva ainda parcialmente a antiga forma; apenas o pára-sol se transformou numa coluna em forma de pirâmide que, provavelmente, simboliza a Arvore da Vida. Em Ceilão, em vez da cerca, a vedação é constituída por círculo de pilares, mais baixos na parte interior e cobertos por um telhado. Pilares semelhantes rodeiam ainda hoje a mais antiga stupa de Ceilão, o Thuparama dagoba, cuja construção original data do reinado de Achoca (273-232 a. C.).
A evolução-formal da stupa acompanhou o desenvolvimento da doutrina e recebeu um novo impulso da nova forma religiosa da Mahayana. A diferença entre a Hinayana e a Mahayana tinha ficado estabelecida no concílio convocado pelo rei Kanishka (posterior ao ano 120 d. C.). No entanto, só raramente existiu uma rigorosa separação das duas doutrinas (mesmo mais. tarde), se exceptuarmos algumas comunidades de monges. Hinayana não conseguiu preservar a sua doutrina, essencialmente filosófica, de um processo de teologização. Era uma tentação demasiado grande e atraente para as massas.
O ideal do Mahayana é o boddhisattva, o santo cuja essência é o “saber”, que se impôs, antes de atingir o estado definitivo de Buda, a missão de dar remédio a desgraça do Mundo. A especulação mahayanista, com céus sobrepostos até o infinito, nota-se na stupa, sobretudo pelo movimento para o alto. As stupas representaram desde então a direção para o Além: é a tendência gótica da doutrina. A antiga cúpula hemisférica concretizava esse impulso para o alto por uma construção em forma de sino, que se elevava de uma base com vários degraus. O número de degraus, a que diversas aplicações horizontais carregam de significado, varia entre cinco e sete, depois passa a nove, onze e, por fim, treze.
A partir do símbolo da mãe original de toda a matéria e causa primeira de todas as coisas, o ovo universal monumental, do qual também fazia parte Brama, de quem procedem todas as criaturas e que ainda era adorado como tal em grutas da época paleobúdica (gruta de Lomas - rishi, chaitya de Guntupalle), foi criada a stupa, encarnação de um sistema de idéias orientadas para o Além.
O nome dhatu garba quer dizer «relicário» e aplicava-se, de principio, apenas à harmika na qual era inumado o recipiente que continha as relíquias. Mais tarde, a anda, a parte em forma de ovo, foi identificada com o dhatu garba e, finalmente, todo o edifício tomou o nome de dhatu garba; em Ceilão: dagoba; na Birmânia: pagode (paya). O sistema dos andares espirituais de especulação mahayanista, concretizado na península indochinesa pelo coroamento recortado tornou-se o elemento principal do pagode chinês.*
*[atualmente este ponto de vista é contestado. N.t.]
Como foi indicado, o pára-sol original que protegia a harmika, em sinal de honra, tornou-se o símbolo da Arvore da Vida e da Iluminação, que sai da cinza do altar dos sacrifícios, da harmika fechada nos quatro lados que encima o ovo do mundo. A haste piramidal do dagoba representa a Arvore da Vida, com os seus mundos superiores, que se podem atingir através de profundas meditações no caminho da Iluminação.
Na stupa indiana, foi elevado o pedestal, originalmente cilíndrico, e construídos vários degraus. A inclusão da cerca e dos pórticos valorizou-a. A ornamentação da balaustrada foi transferida para as paredes verticais da base e, em substituição das toranas, escadas orientadas nas quatro direcções conduziam ao terraço do pedestal. Essas quatro escadas acentuavam o significado cósmico universal do edifício; o que levou automaticamente à transformação da base redonda numa base quadrada, que, por meio de vários degraus, permitiu então o acesso até ao cimo da cúpula.
Esta mudança deu-se ao mesmo tempo que a introdução da Mahayana, cujos textos demonstram que a stupa assim transformada simboliza o caminho da Iluminação e que já não é apenas um monumento em honra dos budas e dos santos mas também um guia para a Iluminação dos homens.

O chaitya

Se a stupa, coroada pela harmika, desempenhava a função de um altar do culto búdico, podemos considerar o chaitya como a igreja do budismo primitivo. Assim como as catacumbas cristãs precederam a igreja, os chaityas foram precedidos de grutas rupestres. Túmulos na sua origem, foram depois transformados para as práticas cultuais, com uma stupa subterrânea, a qual compreendia um vestíbulo que podia servir de sala de reuniões (Yunnar, Guntupalle, Lomas-rishi).
Reunindo os dois locais, obtiveram a sala retangular do chaitya rodeada de uma fila de colunas, que termina por uma abside hemisférica, tendo, na sua extremidade, a stupa destinada às procissões. Os chaityas ao ar livre, originariamente de madeira, sofreram as agruras do tempo e as perseguições posteriores suportadas pelo budismo; os chaityas, juntamente com as stupas, são os mais remotos monumentos da igreja búdica oficial desses tempos.
A mais antiga dessas salas é o chaitya de Baja (c. 200-175 a. C.) nas proximidades de Karli, na costa ocidental do continente indiano (os Gates Ocidentais), a sudeste de Bombaim. A fachada cega, edificada em madeira, desapareceu, sendo conservada, no entanto, em Kondani. Com as varandas suspensas, é uma imitação das construções monásticas (viharas), que, nos antigos mosteiros, existiam à volta de um chaitya. A transposição fiel das suas estruturas e formas ainda hoje pode ser testemunhada pelos arcos de madeira nos grandes vãos exteriores das janelas.
A sala do chaitya do grupo de grutas de Bedsa, a 16 km ao sul de Karli, com divisões de pedra, as colunas, os capitéis em forma de sino, assinala alguns progressos no desenvolvimento desse tipo de construção. A mais importante e a mais bem conservada é a sala rupestre de Karli, cuja escavação está calculada no princípio da nossa era. Aqui desapareceram as reminiscências arcaicas. A sala era fechada por uma parede frontal, sustentada por duas colunas, que hoje desapareceu quase totalmente. Atrás dessa parede frontal, decorada na origem com uma galeria de madeira e que se abria no topo numa colunata para deixar passar a luz, encontra-se o vestíbulo fechado, por sua vez, na parte debaixo, por uma parede ornamentada com esculturas tardias e apenas com três peque- nas portas de entrada.
No cimo da parede existia uma galeria destinada aos exercícios espirituais. A abertura da grande janela de arco é igualmente guarnecida com vigas arqueadas, de madeira de teca. A sala, com três naves, é mais estreita do que o átrio. As quinze colunas que separam, de ambos os lados, as colaterais da nave central são formadas por uma base em forma de vaso, um fuste cilíndrico, capitéis com lótus e um coroa- mento figurativo composto, para cada uma das colunas do lado da nave central, por dois elefantes ajoelhados tendo às costas duas divindades, e no lado oposto por um cavalo e um tigre transportando uma figura cada um.
Em contrapartida, as sete colunas atrás da stupa são simples pilares octogonais sem capitéis. A abóbada é decorada como habitualmente com molduras de madeira, aqui especialmente salientes e bem conservadas. A stupa, muito simples, é composta por duas varandas para as procissões, com balaustradas, uma parte superior com sete degraus e um pára-sol de madeira.
No grande edifício monástico da gruta de Ajanta, existem quatro salas de chaitya, das quais duas, as número X e XI, datam dos séculos II e I a. C., a número XIX do final do século V e a número XXVI de c. 600 d. C.
Nas duas salas mais recentes, aparece já a figura, maior do que o tamanho natural, de Gautama Buda sentado e de pé, no dagoba; e numerosos budas ornamentam, em fileiras, a fachada. As colunas simples transformaram-se em pilares ricamente decorados. A pitoresca decoração primitiva do friso em redor já não era suficiente para o gosto de grandeza que reinou mais tarde e foi substituída por baixos-relevos ricamente ornamentados por “mil budas”. Apenas o tecto conservou as suas molduras tradicionais. O Vishvakarma-chaitya (Vishvakarma, o construtor universal, o arquitecto dos deuses), de Elora, assemelha-se no interior aos dois últimos chaityas de Ajanta, dos quais é também contemporâneo. Possui, no entanto, uma fachada diferente, sem os grandes arcos das portas e com um quebra-luz.

O vihara e o sangharama

O significado literal de vihara é: «local onde se passa agradavelmente o tempo». Eram considerados como tais os ermitérios e os mosteiros. Chamou-se vihara à cabana do monge assim como a qualquer construção onde existisse uma estátua, ou seja, uma capela ou um templo. Por extensão, a palavra serviu igualmente para designar agrupamentos monásticos, que eram compostos por numerosos edifícios, stupas, chaityas e residências para monges. Estas últimas foram também chamadas sangharamas (de Sanga, a comunidade, e arama, o jardim).
A forma dos viharas é muito variada. Trata-se, geralmente, de construções redondas, quadradas ou retangulares, com tetos em forma de pavilhão ou cúpula. Como já não existem hoje senão algumas ruínas de viharas isoladas no Noroeste da Índia, em Gandara, no vale do Swat ou em Caxemira, é através das numerosas representações dessas construções nos baixos-relevos búdicos que se pode fazer uma idéia mais concreta dos seus diversos aspectos.
O plano esquemático ideal do sangharama compreende um pátio aberto, rodeado por celas em fila e varandas. As fundações de tais construções foram descobertas em Sanchi, no país de Gandara, em Sarnate, em Nalanda, etc., e mais tarde na bacia do Tarim. Outros sangharamas foram igualmente cavados nas rochas, juntamente com os chaityas, neste caso designados a maioria das vezes por viharas, o que resultava, em vez do pátio aberto, numa sala fechada com celas à volta, enquanto a parte da frente se transformava numa varanda. Esses viharas rupestres estão em ligação com os chaityas da Índia Ocidental, de Baja, Bedsa, Nasik, Ajanta, Kondani, etc. Em Karli, tinham vários andares, mas ruíram. Os viharas rupestres de Ajanta, na encosta de um extenso vale, têm especial importância para a história da arte; foram cavados durante o milênio búdico, do século II a. C. até ao século VII d. C., e permitem fazer uma idéia geral da pintura búdica.
O principal exemplar de um vihara rupestre de vários andares encontra-se em Elora, centro de peregrinação comum às três religiões da Índia, bramanismo, budismo e jainismo. Podem ver-se em Elora onze viharas anexos ao chaitya. Dois de entre eles são construções de três andares e a sala do terceiro andar, com a sua perspectiva de quarenta pilares em cinco filas, produz um efeito grandioso. Budas e santos ornamentam as paredes. O conjunto de stupas, chaityas, viharas e sangharamas em grandes conjuntos constituía, como lugar de peregrinação ou educação, os centros do mundo budista.
Devemos a Fa Xian, que viajou na Índia de 399 a 413, e a Xuan Zang, que fez a mesma viagem de 629 a 645, as descrições de mosteiros dessa época. Xuan Zang faz de Nalanda, perto de Rajagriha, antiga capital do reino de Magada, uma erudita descrição, segundo a qual podemos ter uma idéia clara do aspecto e da magnificência desses lugares piedosos.
«As habitações dos monges, com quatro andares, estavam situadas nos diversos pátios. Os pavilhões tinham pilares decorados com dragões e vigas que brilhavam com todas as cores do arco-íris, os telhados ricamente ornamentados, as colunas decoradas de jade, profusamente esculpidas e pintadas de vermelho e com balaustradas rendadas. Os lintéis das portas tinham uma decoração especial e os tetos estavam cobertos de azulejos coloridos cujos reflexos os faziam mudar de aspecto continuamente. Existem na Índia milhares de sangharamas, mas nenhum se pode comparar com este em esplendor e riqueza, nem na altura das suas construções»
A reputação de Nalanda é devida a Nagarjuna, o célebre apóstolo do Makayana que ai viveu no século I d. C.
As escavações destes últimos decênios puseram a descoberto onze pátios com celas, edificadas umas ao lado das outras, e várias stupas. Das celas apenas restam os andares inferiores, mas a solidez das paredes indica que eram construídas para agüentar pesadas cargas. As stupas, situadas à parte, tomaram-se edifícios gigantescos em conseqüência das reconstruções sucessivas sobre as antigas construções em ruínas. Esta forma. simplista de renovação por meio de construções maciças era utilizada desde há muito para as stupas antigas.
Mosteiros como os de Nalanda, Taxila, no pais de Gandara, ou ainda Ajánta, eram escolas superiores não apenas para a instrução da teologia búdica mas também para as ciências profanas. Em Nalanda numerosos professores ensinavam os sistemas filosóficos indianos, matemática e astronomia. Era ai que ficava situado o observatório oficial do reino de Magada, cujo clépsidra fornecia a hora oficial ao país. Eram, freqüentemente, incorporadas aos mosteiros escolas de arte, dando assim oportunidade aos monges de se formarem em pintura ou escultura.

in Diez, E. et FISCHER, K. India. Lisboa: Verbo, 1969


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