In Eliade, M. História das Crenças e Mitos Religiosos. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
A RELIGIÃO DOS INDO-EUROPEUS. OS DEUSES VÉDICOS
61. Proto-história dos indo-europeus.
A irrupção
dos indo-europeus na história é marcada por terríveis destruições. Entre ,-2.300 e ,-1.900, na Grécia, na Ásia Menor, na Mesopotâmia, numerosas
cidades são saqueadas e incendiadas; assim Tróia em aproximadamente -2.300, Beyce-Sultan, Tarso e cerca de
300 cidades e aldeias da Anatólia. Os documentos mencionam grupos étnicos
denominados hititas, luvianos, mitanianos, mas elementos ariófonos são
igualmente atestados em outras levas de invasores. A dispersão dos povos
indo-europeus tinha começado alguns séculos antes, e prolongou-se durante dois
milênios. Por volta de ,-1.200, os
arianos haviam penetrado na planície indo-gangética, os iranianos achavam-se
solidamente instalados na Pérsia, e a Grécia e as ilhas estavam
indo-europeizadas. Alguns séculos mais tarde, a indo-europeização da Índia, da
península itálica, da península balcânica e das regiões cárpato-danubianas, da
Europa central, setentrional e ocidental - desde o Vístula até o mar Báltico e
o Atlântico -, estava ou concluída, ou consideravelmente adiantada. Esse
processo característico - migração, conquista de novos territórios, submissão,
seguida de assimilação, dos habitantes - só cessou no século XIX da nossa era.
Não se conhece outro exemplo semelhante de expansão lingüística e cultural.
Há mais de
um século, os cientistas têm-se esforçado por identficar a pátria e a origem
aos indo-europeus, por decifrar-lhes a proto-história e esclarecer-lhes as fases das migrações. Tem-se procurado a
pátria originária no Norte e no Centro da Europa, nas estepes da Rússia, na
Ásia central, na Anatólia etc. Concorda-se hoje em localizar o centro de
irradiação dos indo-europeus nas regiões ao norte do mar Negro, entre os Cárpatos
e o Cáucaso. Ao norte do mar Negro desenvolveu-se, entre o V e o III milênios,
a cultura denominada dos túmulos (kurgan).
Por volta de -4.000-3.500, nota-se a sua expansão ocidental, até Tisza.
Durante o milênio seguinte, os represeÁsia central, na AnPor volPor volta de -4.000-3.500, nota-se a sua expansão ocidental,
até Tisza. Durante o milênio seguinte, os represeÁsia central, na Anatólia etc.
Concorda-se hoje em localizar o centro de irradiação dos indo-europeus nas
regiões ao norte do mar Negro, entre os Cárpatos e o Cáucaso. Ao norte do mar
Negro desenvolveu-se, entre o V e o III milênios, a cultura denominada dos
túmulos ’)-)o.
O
vocabulário comum mostra que os indo-europeus praticavam a agricultura, criavam
bovinos (mas também porcos e provavelmente carneiros) e conheciam o cavalo
selvagem ou domesticado. Embora jamais tenham podido renunciar aos produtos
agrícolas, os povos indo-europeus desenvolveram de preferência uma economia
pastoril. O nomadismo pastoril, a estrutura patriarcal da família, o gosto
pelas razias e a organização militar com vista às conquistas são traços
característicos das sociedades indo-européias. Uma diferenciação social
bastante radical é indicada pelo contraste entre os túmulos (tumbas construídas
em forma de casa e ricamente ornamentadas) e as sepulturas muito mais pobres.
Muito provavelmente, os túmulos (kurgan) eram
reservados aos despojos dos chefes.
Para o que
nos propomos, importa precisar em que medida esse modo de existência -
nomadismo pastoril, fortemente reorganizado para as guerras e as conquistas -
encorajou e facilitou a emergência de valores religiosos específicos. É óbvio
que as criações das sociedades agrícolas não correspondem inteiramente às
aspirações religiosas de uma sociedade pastoril. Por outro lado, não há de fato
sociedade Pastoril completamente independente da economia e da religião dos
cultivadores. Além disso, nas suas migrações e conquistas, os indo-europeus, de
forma contínua, submeteram e assimilaram populações sedentárias agrícolas. Em outras
palavras, bem cedo em sua história, os indo-europeus tiveram de conhecer as
tensões espirituais provocadas pela simbiose de orientações religiosas
heterogêneas, ou até antitéticas.
62. O primeiro panteão e o vocabulário religioso
comum.
É possível
reconstituir certas estruturas da religião indo-européia comum. Há,
inicialmente, indicações, sumárias mas preciosas, trazidas pelo vocabulário
religioso.
Desde o
começo dos estudos, reconheceu-se o radical indo- europeu deiwos, "céu", nos termos que designam o "deus"
(lat. deus, sansc. deva, iran. div, lit. diewas, antigo
germânico tivar) e nos nomes dos
principais deuses: Dyaus, Zeus, Júpiter. A idéia de deus revela-se solidária da
sacralidade celeste, isto é, de luz e "transcendência" (altura), e,
por extensão, da idéia de soberania e de criatividade, no seu sentido imediato:
cosmogonia e paternidade. O (deus do) Céu é acima de tudo o Pai: cf. o indiano Dyauspitar, o grego Zeus paten, o ilírio
Daipatures, o latim Jupiter, o cita Zeus-Papaios, o trâcio-frigio Zeus-Pappos.
Já que as
hierofanias celestes e atmosféricas desempenham um papel capital, não admira
que certo número de deuses sejam designados pelo nome do trovão: germ. Donar, Thorr, celta Taranis (Tanaros) , báltico Perkunas,
proto-eslavo Perun etc. É
provável que na época indo-européia já o deus do céu - deus supremo porque
criador do mundo e cosmocrata - cedia terreno diante dos deuses da tempestade:
o fenômeno é bastante freqüente na história das religiões. Da mesma forma, o
fogo, provocado pelo relâmpago, é considerado como de origem celeste. O culto
do fogo é um elemento característico das religiões indo-européias; o nome do
importante deus védico Agni encontra-se no latim ignis, lituano ugnis, velho-
eslavo ogni. Pode-se supor também que
o deus solar de- tivesse um lugar preponderante desde a proto-história (cf. o
védico Surya, grego Hêlios, antigo germânico sauil, velho-eslavo solnce, todos designando o sol). Mas os deuses solares tiveram uma
história bastante instável entre os diferentes povos indo-europeus, sobretudo
após o contato com as religiões do Oriente Próximo!). Quanto à Terra (GH'EM),
era considerada uma energia vital oposta ao Céu; entretanto, a idéia religiosa
de Terra-Mãe é mais recente entre os indo-europeus e encontra-se numa zona
limitada. Há um outro elemento cósmico, o Vento, divinizado no lituano Wejopatis, "Senhor do Vento",
e no iraniano Vayu e indiano Vâyu. Todavia, no caso destes dois
últimos trata-se de mais do que epifanias cósmicas: eles apresentam, sobretudo
o iraniano Vâyu, os traços
característicos dos deuses soberanos.
Os
indo-europeus tinham elaborado uma teologia e uma mitologia específicas.
Praticavam sacrifícios e conheciam o valor mágico-religioso da palavra e do
canto (KAN). Possuíam concepções e rituais que lhes permitiam consagrar o
espaço e "cosmizar" os territórios em que se instalavam (essa
encenação mítico-ritual é atestada na Índia antiga, em Roma, e entre os
celtas), os quais lhes permitiam, de mais a mais, renovar periodicamente o
mundo (pelo combate ritual entre dois grupos de celebrantes, rito de que
subsistem traços na Índia e no Irã). Julgava-se que os deuses estavam presentes
às festividades, ao lado dos homens, e as suas oferendas eram queimadas. Os
indo-europeus não erguiam santuários: muito provavelmente, o culto era
celebrado num recinto consagrado, ao ar livre. Outro sinal característico: a
transmissão oral da tradição e, por ocasião do encontro com as civilizações do
Oriente Próximo, a proibição de utilizar a escrita.
Mas, como
era de esperar, tendo em vista os numerosos séculos que separam as primeiras
migrações indo-européias (hititas, indo-iranianos, gregos, itálicos) das
últimas (germanos, balto-eslavos), a herança comum nem sempre é identificável
no vocabulário, nem nas teologias e mitologias da época histórica. Devem-se
levar em conta, por um lado, os diferentes contatos culturais realizados
durante as migrações; cumpre não esquecer, por outro lado, que nenhuma tradição
religiosa se prolonga indefinidamente sem modificações, produzidas seja por
novas criações espirituais, seja por empréstimo, simbiose ou eliminação.
O
vocabulário reflete esse processo de diferenciação e inovação, iniciado
provavelmente desde a prato-história. O exemplo mais significativo é a ausência
de um termo específico, no indo-europeu comum, para designar o
"sagrado". Por outro lado, em iraniano, latim e grego, dispõe- se de
dois termos: avéstico spenta/yaoz-dâta (cf.
também gótico hails/weih); lato sacer/sanctus,' grego hierós/hágios. "O estudo de cada um
dos pares atestados... faz com que se apresente, na pré-história, uma noção de
duplo aspecto: positivo, 'O que é carregado de presença divina', e negativo, 'o
que é proibido ao contato dos homens'". Da mesma forma, segundo
Benveniste, não havia um termo comum para designar o "sacrifício".
Mas essa ausência "tem por contrapartida, nas diversas línguas e
freqüentemente no interior de cada uma delas, uma grande diversidade de
designações correspondentes às diversas formas da ação sacrificatória: libação
(sansc. juhoti, gr. spéndô), compromisso verbal solene (lat.
uoceo, gr. eúkhamai) , banquete faustoso (lat. daps), fumigação (gr. thúô) ,
rito da luz (lat. lustro)".
Quanto à "oração", a terminologia constituiu-se a partir de duas
raízes distintas. Em suma, desde a prato-história comum, os diferentes povos
indo-europeus pautavam-se pela tendência de reinterpretar continuamente as suas
tradições religiosas. Esse processo intensificou-se no decurso das migrações.
63. A ideologia tripartida indo-européia.
Os
fragmentos das diversas mitologias indo-européias constituem uma fonte
importante. É certo que esses fragmentos pertencem a diferentes épocas e nos
foram transmitidos por documentos heterogêneos e de desigual valor: hinos,
textos rituais, poesia épica, comentários teológicos, lendas populares,
historiografias, tradições tardias registradas por autores cristãos após a
conversão dos povos da Europa central e setentrional. Entretanto, todos esses
documentos são preciosos, pois conservam ou refletem (mesmo deformadas) muitas concepções
religiosas originais. Os exageros e os erros da "mitologia
comparada", tal como a entendiam Max Muller e seus epígonos, não nos devem
impedir de utilizar esses materiais. Basta que não nos enganemos sobre o seu
valor documentário. Um mito atestado no Rig Veda não pode ser posterior ao II
milênio, ao passo que as tradições conservadas por Tito Lívio, pela epopéia
irlandesa ou por Snorri Sturluson, são, do ponto de vista cronológico,
consideravelmente mais jovens. Mas se tais tradições concordam em todos os
pontos com o mito védico, é difícil duvidar do seu caráter comum indo-europeu,
sobretudo se tal confronto não aparece isolado, mas deixa-se articular em um
sistema.
Foi o que
demonstrou Georges Dumézil numa série de obras que renovaram radicalmente o
estudo comparado das mitologias e das religiões indo-européias. Não há
necessidade de resumi-las aqui. Basta-nos dizer que as pesquisas do cientista
francês destacaram uma estrutura fundamental da sociedade e da ideologia
indo-européias. À divisão da sociedade em três classes - sacerdotes,
guerreiros, criadores-agricultores - correspondia uma ideologia religiosa
trifuncional: a função da soberania mágica e jurídica, a função dos deuses da
força guerreira, e finalmente a das divindades da fecundidade e da prosperidade
econômica. É entre os indo-iranianos que melhor se compreende essa divisão
tripartida dos deuses e da sociedade. De fato, na Índia antiga, às classes
sociais dos brâhmana (brâmanes:
sacerdotes, sacrificadores), ksatriya (xátrias:
militares, protetores da comunidade) e vaisya
(vaixiás: produtores), correspondem os deuses Varuna e Mitra, Indra e os
gêmeos Nâsatya (ou os Asvins). Os mesmos deuses encontram-se, citados na mesma
ordem, no tratado concluído por um rei hitita, por volta de 1.380, com um chefe
dos para-indianos (mitanianos) na Ásia Menor: Mitra-(V) aruna [variante
Uruvana], Indara, os dois Nâsatya. Da mesma forma, o A vesta distingue os
sacerdotes (âthra.van), os guerreiros
(que combatem nos carros, rathaê- -star),
os criadores-agricultores (vâstryô.fsuyant);
com a diferença de que, no Irã, essa divisão social não se solidificou num
sistema de castas. Segundo Heródoto (IV, 5-6), também os citas iranianos
conheciam a divisão em três classes, e a tradição se manteve até o século XIX
entre os ossetas do Cáucaso, descendentes diretos dos citas.
Os celtas
repartiam a sociedade em druidas (sacerdotes, juristas), aristocracia militar (flaith, lit. "poder",
equivalente do sânscrito ksatrâ) e bo airig, homens livres (airig) possuidores de vacas (bó). Segundo Dumézil, pode-se discernir
uma divisão social similar nas tradições míticas, mas fortemente
historicizadas, da fundação de Roma: O rei Rômulo, protegido por Júpiter; o
etrusco Lucumão, técnico da guerra; Tatius e os sabinos, que trazem as mulheres
e as riquezas. A tríade capitolina - Júpiter, Marte, Quirino - constitui de
alguma forma o modelo divino, celeste, da sociedade romana. Finalmente, uma
tríade análoga domina a religião e a mitologia escandinava: o deus soberano
Othin, Thôrr, o paladino, e Freyr, patrono da fecundidade.
A divisão
da primeira função em duas partes ou tendências complementares - soberania
mágica e soberania jurídica - está claramente ilustrada pelo casal Varuna e
Mitra. Para os antigos indianos, Mitra é, com efeito, o deus soberano "sob
o seu aspecto meditativo, claro, organizado, calmo, benévolo, sacerdotal - e
Varuna, o soberano sob o seu aspecto agressivo, sombrio, inspirado, violento,
terrível, guerreiro". Ora, o mesmo díptico encontra-se particularmente em
Roma com as mesmas oposições e as mesmas alternâncias: é, de um lado, a
oposição entre os lupercos - jovens que corriam, nus, através da cidade e
batiam nos passantes com uma correia de pele de cabra, a fim de fecundá-los - e
os sacerdotes por excelência, os flâmines; e, do outro lado, são as estruturas
e os comportamentos diferentes dos dois primeiros reis de Roma: Rômulo, que
introduz os dois cultos do Júpiter terrível, e Numa, que funda um santuário da Fides Publica e professa uma devoção
todo particular a essa deusa que garante a boa fé e registra os juramentos. A
oposição Rômulo-Numa oculta em seu princípio a oposição lupercos- flâmines e,
por outro lado, corresponde em todos os pontos à polaridade Varuna-Mitra.
Ao analisar
os dois aspectos da soberania divina entre os indianos e entre os romanos,
Georges Dumézil sublinhou com conhecimento de causa as diferenças. Tanto na
Índia védica como em Roma, reconhece-se a mesma estrutura indo-européia, mas os
dois "campos ideológicos" não são homogêneos. "Os romanos pensam
historicamente, enquanto os indianos
pensam mitologicamente. Os romanos
pensam nacionalmente e os indianos cosmicamente" Ao pensamento
empírico, relativista, político, jurídico dos romanos, opõe-se o pensamento
filosófico, absoluto, dogmático, moral e místico dos indianos. Distinguem-se
diferenças análogas dos "campos ideológicos" em outros povos
indo-europeus. Conforme já dissemos, os documentos de que dispomos constituem
as expressões específicas aos diferentes povos ariófonos, no decorrer da história.
Em suma, tudo o que podemos aprender é a estrutura
geral da ideologia indo-européia, e não o pensamento e as práticas
religiosas da comunidade original. Entretanto, essa estrutura nos informa sobre
o tipo de experiência e de especulação religiosas peculiar aos indo-europeus.
Ela permite-nos, além disso, apreciar a criatividade específica de cada um dos
povos ariófonos.
Como se
podia prever, a maior diversificação morfológica é atestada ao nível da
terceira função, pois as expressões religiosas relacionadas com a abundância, a
paz, a fecundidade, têm necessariamente vínculos com a geografia, a economia e
a situação hist6rica de cada grupo. Quanto à segunda função, a força física,
principalmente o uso da força nos combates, Georges Dumézil precisou um certo
número de correspondências entre a Índia (já entre os indo-europeus), Roma e o
mundo germânico. Dessa maneira, a prova iniciat6ria por excelência consistia no
combate do jovem guerreiro contra três adversários ou contra um monstro
tricéfalo (representado por uma imagem?). De fato, uma encenação desse gênero é
facilmente decifrável na hist6ria do combate vitorioso do her6i irlandês
Cuchulainn contra três irmãos, e no combate de Horácio contra os três
Curiácios; o mesmo ocorre nos mitos de Indra e do her6i iraniano Thraêtaona,
que matam, cada qual, um monstro de três cabeças. A vít6ria provoca em
Cuchulainn e em Horácio um "furor"
(furor, celta ferg) perigoso para
a sociedade e que exige um exorcismo ritual. Além disso, o tema mítico dos
"três pecados" de Indra encontra hom6logos, na Escandinávia, no gesto
do herói Starcatherus e, na Grécia, na mitologia de Héracles. Muito
provavelmente, esses temas mítico-rituais não dispensavam a mitologia e as
técnicas do guerreiro na época comum indo-européia. Mas é importante constatar
que eles foram conservados nos dois extremos da dispersão, a Índia e a Irlanda.
Tanto
quanto se pode julgar, a ideologia tripartida constituía um sistema coerente
mas flexível, diversamente completado por uma grande quantidade de formas divinas,
idéias e práticas religiosas. Teremos oportunidade de apreciar o seu número e
importância ao estudarmos separadamente as diferentes religiões indo-européias.
Há razões para crer que a ideologia tripartida, embora elaborada na época
comum, tinha afastado ou reinterpretado radicalmente algumas concepções
igualmente veneráveis, como, por exemplo, a do deus do céu, criador, soberano e
Pai. O afastamento de Dyauspitar em proveito de Varuna, de que se encontram
vestígios no Rig Veda, parece refletir, ou prolongar, um processo muito mais
antigo.
64. Os arianos na Índia.
No seu
período comum, as tribos indo-iranianas designavam-se por meio de um termo que
significava "(homem) nobre", airya
em avéstico, ârya em sânscrito.
Os arianos tinham iniciado a sua penetração no Nordeste da Índia no começo do
II milênio; quatro ou cinco séculos mais tarde, ocupavam a região dos
"Sete Rios", sapta sindhavah,
isto é, a bacia do alto Indo, o Pendjabe. Como observamos no § 39 (vol. 1), é
possível que os invasores tenham atacado e destruído certas cidades harapianas.
Os textos védicos evocam os combates contra os dâsa ou dasya, nos quais
se podem reconhecer continuadores ou sobreviventes da civilização do Indo. São
descritos como sendo de pele negra, "sem nariz", falando língua
bárbara e professando o culto do falo (sisna
deva). São ricos em rebanhos e habitam aglomerações fortificadas (pur). São esses "fortes" que
Indra - cognominado purandara, "destruidor
de fortificações" - atacava e destruía às centenas. Os combates verificaram-se
antes da composição dos hinos, pois a sua lembrança está fortemente
mitologizada. O Rlg Veda menciona ainda outra população inmiga: os Pani, que roubam as vacas e rejeitam o
culto védico. É provável que Hariyupüyâ, nas margens do rio Ravi, seja idêntica
a Harapa. Alem disso, os textos védicos aludem às ruínas (arma, armaka) habitadas por "feiticeiras"; isso mostra
que os arianos associavam as cidades arruinadas aos antigos habitantes da
região.
Entretanto,
a simbiose com os aborígines tem início bem cedo. Se nos livros tardios do Rig
Veda o vocábulo dása significa
"escravo", indicando a sorte dos Dâsa vencidos, outros membros da
população submetida parecem convenientemente integrados na sociedade ariana;
por exemplo, o chefe Dâsa louvado por proteger os brâmanes (R.V., VIII, 46,
32). O casamento com os autóctones deixa traços na língua. O sânscrito védico
possui uma série de fonemas, especialmente as consoantes cerebrais, que não se
encontram em nenhum outro idioma indo-europeu, nem mesmo no iraniano. É muito
provável que essas consoantes reflitam a pronúncia dos aborígines que se
esforçam por aprender a língua dos seus senhores. Da mesma forma, o vocabulário
védico conserva uma grande quantidade de palavras não-arianas. De mais a mais,
certos mitos são de origem autóctone. Esse processo de simbiose racial,
cultural e religiosa, atestado desde a época mais afastada, ampliar-se-á à
medida que os arianos forem avançando para a planície gangética.
Os indianos
védicos praticavam a agricultura, mas a sua economia era sobretudo pastoril. O
gado desempenhava a função de moeda. Consumiam-se o leite e seus produtos, bem
como a carne bovina. O cavalo era altamente apreciado, mas estava reservado
exclusivamente à guerra, às razias e ao ritual real (cf. § 37). Os arianos não
tinham cidades e desconheciam a escrita. Apesar da simplicidade de sua cultura
material, os carpinteiros e os ferreiros que trabalhavam com bronze gozavam de
grande prestígio. O ferro só começou a ser utilizado por volta de -1.050.
As tribos
eram dirigidas por chefes militares, os râjâ.
O poder desses régulos era suavizado por conselhos populares (sabhâ e samiti). No fim da época védica, aproximadamente, a organização da
sociedade em quatro classes está concluída. O termo varna, que designa as classes sociais, significa "cor":
indicação da multiplicidade étnica que esteve na origem da sociedade indiana.
Os hinos
revelam apenas certos aspectos da vida na época védica. A representação é antes
de tudo sumária: os arianos apreciam a música e a dança: tocam flauta, alaúde e
harpa. Apreciam as bebidas alcoólicas, soma
e surâ, esta última sem
significação religiosa. O jogo de dados era bastante popular; todo um hino do
Rig Veda (X, 34) lhe é dedicado. Muitos são os hinos que aludem aos conflitos
entre diferentes tribos arianas. A mais célebre, a tribo dos Bharata, havia
triunfado, ao tempo do seu rei Sudas, sobre dez príncipes confederados. Mas os
dados históricos do Rig Veda são um tanto ou quanto pobres.
Certos
nomes das tribos védicas - o dos Bharata, por exemplo - reapareceram na
literatura posterior. O Mahâbhârata, composto
pelo menos cinco ou seis séculos depois da época védica, narra a grande guerra
entre os kuru e os seus primos, os pândava. Segundo a tradição conservada pelos
purânas, essa guerra teria ocorrido por volta de -1.400, no Madhyadesa, no
centro da península, o que indica a penetração dos arianos além do Ganges. No
tempo em que foi redigido o grande tratado teológico Satapatha Brahmânia, entre -1.000 e -800, as províncias de Kosala e
Videha estavam arianizadas. Por seu turno, o Râmâyâna mostra que a influência dos arianos se estendia em direção
ao sul.
Assim como
os adversários dos arianos foram mitologizados, metamorfoseados em
"demônios" e em "feiticeiros", as batalhas iniciadas
durante a conquista do território foram transfiguradas, ou, mais precisamente,
assimiladas aos combates de Indra contra Vrtra e outros Seres
"demoníacos". Discutiremos mais adiante as implicações cosmológicas
de tais combates exemplares (§ 68). Por enquanto, afiancemos que a ocupação de
um novo território se tornava legitima através da ereção de um altar (gâr hapatya) dedicado a Agni.
"Afirma-se que se esta instalado (avasyati)
quando se construiu um gârhapatya, e
todos aqueles que constroem o altar do fogo estão estabelecidos (Satapatha Br., VIII, I, I, 1-4)."
Mas a ereção de um altar dedicado a Agni não é diferente da imitação ritual da
Criação. Em outras palavras, o território ocupado é previamente transformado de
"caos" em "cosmo"; em razão do rito, ele recebe uma
"forma", e torna-se real.
Como
veremos oportunamente, o panteão védico é dominado pelos deuses. As poucas
deusas cujos nomes se conhecem desempenham um papel de preferência apagado: a
enigmática Aditi, a Mãe aos deuses, Usas, a deusa da aurora; Râtari, a Noite, à
qual se consagrou um belo hino (R. V., X, 127). Muito mais significativa é,
pois, a posição dominante da Grande Deusa no hinduísmo: ela ilustra,
certamente, o triunfo da religiosidade extrabramânica, e também o poder criador
do espírito indiano. Evidentemente, deve-se levar em conta o fato de que os
textos védicos representam o sistema religioso de uma elite sacerdotal que
servia a uma aristocracia militar; o resto da sociedade - isto é, a maioria, os
vaisya e os sudra - compartilhava provavelmente idéias e crenças análogas às
que vamos encontrar, dois mil anos mais tarde, no hinduísmo. Os hinos não
refletem a religião védica no seu conjunto; foram compostos para um público
preocupado antes de tudo com os bens terrestres: saúde, longevidade, numerosos
filhos, abundância de gado, riqueza. É, portanto, plausível pensar que certas
concepções religiosas que se tornarão populares mais tarde já estavam articula-
das na época védica.
O poder
criador do espírito indiano que evocamos um pouco acima aparece sobretudo no
processo de simbiose, assimilação e revalorização que conduz à arianização da
Índia, e, mais tarde, à sua hinduização. Pois esse processo, várias vezes
milenar, efetua-se em diálogo com o sistema religioso elaborado pelas brâmanes,
com base na "revelação" védica (sruti).
No final das contas, a unidade religiosa e cultural da Índia foi resultado
de uma longa série de sínteses, realizada sob o signo dos poetas-filósofos e
dos ritualistas da época védica.
65. Varuna, divindade primordial: Devas e Asuras.
Os hinos
não apresentam a mais antiga forma da religião védica. Dyaus, o deus
indo-europeu do céu, já desapareceu do culto. O seu nome designa agora o
"Céu" ou o "dia". O vocábulo que indica a personificação da
sacralidade uraniana acaba por
designar um fenômeno natural.
Trata-se de um processo bastante freqüente na história dos deuses celestes:
eles se eclipsam diante de outras divindades e tornam-se dii otiosi. É tão-somente na medida em que é venerado como Deus
Soberano que um deus celeste consegue conservar o seu prestígio inicial.
Todavia os poetas védicos ainda se lembram do "Céu que tudo sabe"
(Atharva Veda, I, 32, 4), e invocam o "Céu Pai"; Dyauspitar (ibid., VI, 4, 3); Dyaus, sobretudo,
está presente no casal primordial, Dyâvâprithivi, "o Céu e a Terra"
(R. V., I, 160).
Muito cedo,
o lugar de Dyaus foi ocupado por Varuna, o Deus Soberano por excelência.
Conhecem-se mal as etapas que antecederam a sua promoção à categoria de Rei
Universal, samraj (R. V., VII, 82,
2). Varuna é designado sobretudo pelo título asura, título que, aliás, se aplica a outros deuses, como, por
exemplo, Agni (e. g., A. V., I, 10,
1; etc.). Ora, os Asuras constituíam a família divina mais antiga (A. V., VI,
100, 3). Os textos védicos aludem ao conflito que opôs os deuses (devas) aos Asuras. Esse conflito será
amplamente relatado e comentado, na época pós-védica, nos Brahmâna (Bramanas), tratados consagrados ao mistério do
sacrifício. Com efeito, a vitória dos deuses foi decidida quando Agni, a
convite de Indra, abandonou os Asuras, que não possuíam o sacrifício (R. V., X,
124; V, 5); pouco tempo depois, os Devas furtaram a Palavra sacrifical (Vâc) aos Asuras. Foi então que Indra
convidou Varuna para visitar seu reino (R. V., V, 5). A vitória dos Devas sobre
os Asuras foi assimilada ao triunfo de Indra sobre os Dasyus, que foram
igualmente precipitados nas trevas mais profundas (A. V., IX, 2, 17; cf R. V..
VII, 99, 4; etc.).
Esse
conflito mítico reflete o combate dos “jovens deuses", dirigidos por
Indra, contra um grupo de divindades primordiais. O fato de os Asuras terem a
reputação de "mágicos" por excelência (A. V., III, 9, 4; VI, 72, 1) e
haverem sido assimilados aos sudras não
significa necessariamente que eles representem os deuses das populações
autóctones pré-arianas. Nos Vedas, o titulo asura é empregado como epíteto para qualquer deus, inclusive para
Dyaus e Indra (este último é denominado "Soberano dos Asuras", A. V.,
VI, 83, 3). Em outras palavras, o termo asura
refere-se às forças sagradas específicas de uma situação primordial,
especialmente aquela que existia antes da atual organização do mundo. Os
“jovens deuses”, os Devas, não deixaram de se apropriar dessas forças sagradas;
é por esse motivo que se lhes aplica o epíteto asura.
É
importante frisar que o "tempo dos Asuras" antecede a época atual,
regida pelos Devas. Na Índia, como em muitas religiões arcaicas e tradicionais,
a passagem de uma época primordial à época atual é explicada em termos
cosmogônicos: passagem de um "estado" caótico a um mundo organizado,
um "Cosmo". Vamos encontrar esse pano de fundo cosmogônico no combate
mítico de Indra contra o Dragão primordial, Vrtra (§ 68). Ora, Varuna, na
qualidade de divindade primordial, o asura
no mais alto grau, foi identificado com Vrtra. Essa identificação
possibilitou uma série completa de especulações esotéricas sobre o mistério da
biunidade divina.
66. Varuna: Rei Universal e "mágico";
rta e mâyâ.
Os textos
védicos apresentam Varuna como Deus Soberano: ele reina sobre o mundo, os
deuses (devas) e os homens. Ele
"esticou a Terra como um açougueiro a uma pele, para que ela. seja qual
tapete ao Sol. . . ". Pôs "o leite nas vacas, a inteligência nos
corações, o fogo nas águas, o sol no céu, o soma
sobre a montanha" (R. V., 85, 1-2). Cosmocrata, possui certos
atributos dos deuses celestes: é visvadarsata,
"visível por toda a parte" (R. V., VIII, 41,3), onisciente (A.
V., IV, 16, 2-7) e infalível (R. V., IV, 16, 2-7). Ele tem "mil
olhos" (R. V., VII, 34, 10), fórmula mítica das estrelas. Como tudo
"vê" e nenhum pecado lhe escapa, por mais escondido que esteja, os
homens sentem-se "como escravos" em sua presença (R. V., I, 25, 1).
"Soberano terrível", verdadeiro "senhor dos laços", ele tem
o poder mágico de laçar à distância as suas vítimas e também o de libertá-las.
Numerosos hinos e rituais têm por objetivo proteger ou libertar o homem dos
"pequenos laços de Varuna". É representado com uma corda na mão e,
nas cerimônias, tudo aquilo que é por ele ligado, a começar dos nós, é
denominado "varuniano".
A despeito
desses notáveis prestígios, Varuna já se acha em declínio na época védica. Está
longe de gozar da popularidade de Indra, por exemplo. Mas está ligado a duas
noções religiosas que terão um futuro excepcional: rta e mâyâ. O vocábulo rta, particípio
passado do verbo "adaptar-se", designa a ordem do mundo; ordem ao
mesmo tempo cósmica, litúrgica e moral. Não existe hino dedicado a rta, mas o termo é citado com freqüência
(mais de 300 vezes no Rig Veda). Proclama-se que a criação foi efetuada em
conformidade com o ria, repete-se que
os deuses agem segundo o rta, que o rta governa tanto os ritmos cósmicos
quanto a conduta moral. O mesmo princípio rege também o culto. "A sede do rta" está no mais alto céu ou no
altar do fogo.
Ora, Varuna
foi educado na "casa" do na e
afirma-se que ele ama o rta e
testemunha em favor do rta. É chamado
de "Rei do rta" e diz-se
que essa norma universal, identificada com a verdade, está "baseada"
nele. Aquele que infringe a lei é responsável perante Varuna, e é sempre
Varuna, e só ele, que restabelece a ordem comprometida por pecado, erro ou
ignorância. O culpado espera a absolvição por meio dos sacrifícios (que são,
aliás, prescritos pelo próprio Varuna). Tudo isso salienta a sua estrutura de deus-cosmocrata. Com o tempo, Varuna
tornar-se-á um deus otiosus, que
sobrevive principalmente na erudição dos ritualistas e no folclore religioso.
Entretanto, as suas relações com a idéia da ordem universal são suficientes
para assegurar-lhe um lugar importante na história da espiritualidade indiana.
A primeira
vista, parece paradoxal que o guardião do rta esteja ao mesmo tempo ligado
intimamente a mâyâ. A associação é,
porém, compreensível, se levarmos em conta o fato de que a criatividade cósmica
de Varuna possui também um aspecto "mágico". Sabe-se que o termo mâyâ deriva da raiz mây, "mudar". No Rig Veda, mâyâ designa "a mudança destruidora ou negadora dos bons
mecanismos, a transformação demoníaca e ilusória, e também a alteração da
alteração". Em outros termos, existem mâyâ
boas e más. Neste último caso, trata-se de "ardis" e de
"magias", principalmente magias de transformação de tipo demoníaco,
como as da Serpente Vrtra, que é o mâyin,
ou seja, o mágico, o trickster por
excelência. Tal mâyâ altera a ordem
cósmica, entrava, por exemplo, o curso do sol ou retém as águas cativas etc.
Quanto às boas mâya, são de duas
espécies: 1) as mâyâ de combate, as
"contra-mâyâ" utilizadas
por Indra quando este se mede contra os seres demoníacos; 2) a mâyâ criadora das formas e dos seres,
privilégio dos deuses soberanos, em primeiro lugar de Varuna. Essa mâya cosmológica pode ser considerada
equivalente ao rta. De fato muitas
passagens apresentam a alternância do dia e da noite, o curso do sol, a queda
da chuva e outros fenômenos que implicam o rta, como resultado da mâyâ criadora.
É portanto
no Rig Veda, cerca de 1500 anos antes do Vedânta clássico, que se apreende o
sentido primeiro da mâyâ: "mudança
desejada", isto é, alteração - criação ou destruição - e "alteração
da alteração". Observemos desde já que a origem do conceito filosófico de mâyâ - ilusão cósmica, irrealidade,
não-ser - encontra-se simultaneamente na idéia de "mudança", de
alteração da norma cósmica, e portanto de transformação
mágica ou demoníaca, e na idéia do poder
criador de Varuna, o qual, por intermédio da sua mâyâ, restabelece a ordem do Universo. Compreende-se então por que mâyâ chegou a significar a ilusão cósmica; é porque, desde o
início, se trata de uma noção ambígua, ou até ambivalente: não só alteração
demoníaca da ordem cósmica, mas também criatividade divina. Mais tarde, o
próprio Cosmo se tornará, para o Vedânta, uma "transformação"
ilusória, ou seja, um sistema de mudanças desprovido de realidade.
Voltando a
Varuna, observemos que o seu modo de ser - Soberano terrível, mágico e senhor
dos pequenos laços - permite uma aproximação surpreendente com o dragão Vrtra.
O que quer que se pense sobre o parentesco etimológico dos seus nomes, convém
destacar que ambos se encontram relacionados com as Águas, e em primeiro lugar
com as "Águas represadas" ("o grande Varuna escondeu o mar...”
R. V., IX, 73, 3). A Noite (o não-manifestado), as Águas (o virtual, os
germes), a "transcendência" e o "não-agir" (características
dos deuses soberanos) têm uma solidariedade simultaneamente D1ítica e
D1etafísica com, de um lado, os "laços" de todas as espécies, e com,
de outro lado, o dragão Vrtra, que, como veremos, tinha "represado",
"parado" ou "acorrentado" as Águas.
Além disso,
Varuna é assimilado à Serpente Ahi e a Vrtra2. No Atharva Veda (XII, 3, 57),
ele é qualificado de víbora". Mas é sobretudo no Mahâbhârata que Varuna é
identificado com as serpentes. É chamado de "Senhor do Mar" e
"Rei dos nâgas"; ora, o
Oceano é a "morada dos nâgas"
(Mahabharata, I, 21, 6 e 25, 4).
67. Serpentes e Deuses. Mitra, Aryaman, Aditi.
Essa
ambigüidade e ambivalência de Varuna é importante sob vários aspectos. Mas é
principalmente o caráter exemplar da união
dos contrários que deve reter a nossa atenção. Ela constitui na verdade uma
das características do pensamento religioso indiano, muito tempo antes de
tomar-se objeto da filosofia sistemática. A ambivalência e a união dos
contrários não são próprias apenas a Varuna. O Rig Veda (I, 79, 1) já dava a
Agni a qualificação de "serpente furiosa". O Aitareya Branmâna (m, 36) afirma que a Serpente Ahi Budhnya é de
maneira invisível (paroksena) o que
Agni é de maneira visível (pratyaksa). Em
outros termos, a Serpente é uma virtual idade do Fogo, ao passo que as trevas
são luz não-manifestada. No VâJa- saneyi
Samhitâ (V, 33), Ahi Budhnya e o Sol (Aja Ekapad) estão identificados. Ao
levantar-se na aurora, o Sol "liberta- se da Noite...tal como Ahi se livra
da sua pele (sat. Br., li,3; 1,3 e
6). Da mesma forma, o deus Sarna, "tal como Mi, arrasta-se para fora da
sua velha pele" (R. V., IX, 86,44). O Satapatha
Brahmâna identifica-o com Vrtra (III, 4, 3, 13; etc.). Afirma-se que os
Adityas eram originariamente Serpentes. Tendo-se despojado de suas velhas peles
- o que significa que adquiriram a imortalidade ("eles venceram a
Morte") -, tornaram-se Deuses, Devas (Pancavimsa
Br., XXV, 15, 4). Finalmente, o Sat.
Br. (XIII, 4, 3, 9) declara que "a ciência das Serpentes (sarpa-vidyâ) é o Veda 00. Em outros
termos, a doutrina dIvina está paradoxalmente identificada com uma
"ciência" que, pelo menos no início, tinha um caráter
"demoníaco".
É certo que
a assimilação dos Deuses às Serpentes de certa forma prolonga a idéia, atestada
no Brhadaranyaka Upanisad (I, 3, 1),
de que os Devas e os Asuras são os filhos de Prajâpati, e de que os Asuras são
os primogênitos. A descendência comum das figuras antagônicas constitui um dos
temas favoritos para ilustrar a unidade-totalidade primordial. Vamos encontrar
um exemplo surpreendente disso quando estudarmos as interpretações teológicas
do famoso combate mítico entre Indra e Vrtra.
Quanto a
Mitra, o seu papel é secundário quando ele está separado de Varuna. No Veda, um
único hino (R. V., 111, 59) lhe é consagrado. Mas ele compartilha com Varuna os
atributos da soberania, ao encarnar os aspectos pacífico, benevolente, jurídico
e sacerdotal. Como o seu nome indica, ele é o "Contrato"
personificado, tal como o Mitra avéstico. Ele facilita os tratados entre os
homens e faz com que cumpram os seus compromissos. O sol é o seu olho (Taitt. Brah., II, 1, 5, 1); onividente,
nada lhe escapa. A sua importância na atividade e no pensa. mento religiosos
manifesta-se sobretudo quando é invocado junto com Varuna, de quem é
simultaneamente a antítese e o complemento. O binômio Mitra-Varuna, que, já na
época mais recuada, desempenhava um papel considerável como legítima expressão
da Soberania divina, foi utilizado mais tarde como fórmula exemplar para todas
as espécies de pares antagônicos e de oposições complementares.
A Mitra
estão associados Aryaman e Bhaga. O primeiro protege a sociedade dos árias;
rege sobretudo as prestações que estabelecem a hospitalidade e interessa-se
pelos casamentos. Bhaga, cujo nome significa "parte", assegura a
distribuição das riquezas. Juntos com Mitra e Varuna (e às vezes com outros
deuses), Aryaman e Bhaga formam o grupo dos Adityas ou filhos da deusa Aditi, a
"Não-Ligada", isto é, a Livre. Desde Max Müller, muito se tem
discutido a estrutura dessa deusa. Os textos idenficam-na com a Terra ou mesmo
com o Universo; ela representa a extensão, a amplidão, a liberdade. Muito
provavelmente, Aditi era uma Grande Deusa Mãe que, sem ser de todo esquecida,
havia transmitido as suas qualidades e funções aos seus filhos, os Adityas.
68. Indra, paladino e demiurgo.
No Rig
Veda, Indra é o mais popular dos deuses. Cerca de 250 hinos lhe são
consagrados, em comparação com 10 endereçados a Varuna e 35 simultaneamente a
Mitra, a Varuna e aos Adityas. Indra é o herói por excelência, modelo exemplar
dos guerreiros, temível adversário dos Dasyus ou Dasas. Seus acólitos, os
Maruts, refletem, em nível mitológico, as sociedades indo-iranianas de jovens
guerreiros (marya). Mas Indra é
também demiurgo e fecundador, personificação da exuberância da vida, da energia
cósmica e biológica. Infatigável consumidor de soma, arquétipo das forças genesíacas, ele desencadeia os furacões,
derrama as chuvas e comanda todas as umídades.
O mito
central de Indra, que é aliás o mais importante mito do Rig Veda, narra o seu
combate vitorioso contra Vrtra, o dragão gigantesco que retinha as águas no
"oco da montanha". Fortificado pelo soma. Indra abate a serpente com o seu vajra ("raio"), a arma forjada por Tvastr, parte-lhe a cabeça e liberta as águas, que se espalham em
direção ao mar "qual mugidoras vacas" (R. V., I, 32).
O combate
de um deus contra um monstro ofídío ou marinho constitui, como se sabe, um tema
mítico bastante difundido. Basta lembrarmos a luta entre Ré e Apófis, entre o
deus sumeriano Ninurta e Asag, Marduk e Tiamat, o deus hitita da tempestade e a
serpente Illu,y,anka, Zeus e Tífon, o herói iraniano Thraêtaona e Azhi-dahâka,
o dragão de três cabeças. Em certos casos (Marduk-Tiamat, por exemplo), a
vitória do deus constitui condição prévia da cosmogonía. Em outros casos, o
móvel é a inauguração de uma nova era ou o estabelecimento de uma nova
soberania (cf. Zeus-Tífon, Baal-Yam). Em suma, é através da execução de um
monstro ofídio - símbolo do virtual, do "caos", mas também do
"autóctone" - que uma nova "situação", cósmica ou institucional,
vem a existir. Um traço característico, e comum a todos esses mitos, é o medo,
ou uma primeira derrota, do paladino. Marduk e Ré hesitam antes do combate; num
primeiro momento, a serpente Illuyanka consegue mutilar o deus; Tífon logra
cortar, e roubar, os tendões de Zeus. Segundo o Satapatha Brahnzâna (I, 6, 3-17), Indra, ao perceber Vrtra, foge
para o mais longe que pode, e o Mârkandeya
Furana descreve-o como "doente de medo" e anelante de paz.
Sena inútil
determo-nos nas interpretações naturistas desse mito: viu-se na vitória contra
Vrtra ora a chuva desencadeada pela tempestade, ora a libertação das águas da
montanha (Oldenberg), ora o triunfo do sol contra o frio que havia
"aprisionado" as águas ao congelá-las (Hil- lebrandt). Elementos
naturistas estão, por certo, presentes, uma vez que o mito é multivalente; a
vitória de Indra equivale, entre outras coisas, ao triunfo da vida contra a
esterilidade e a morte, conseqüência da "imobilização" das águas por
Vrtra. No entanto, a estrutura do mito é cosmogônica. No Rig Veda, I, 33, 4,
diz-se que, com sua vitória, o deus criou o sol, o céu e a aurora. Segundo
outro hino (R. V., X, 113, 4-6), Indra, desde o seu nascimento, separou o Céu e
a Terra, fixou a abóbada ce- leste e, ao atirar o mjra, estraçalhou Vrtra, que mantinha as águas nas trevas. Ora, o
Céu e a Terra são os pais dos deuses (I, 185, 6): Indra é o mais jovem (III,
38, 1) e também o último deus a nascer, porque põe cobro à .1lierogamia Céu e
Terra. "Utilizando sua força, ele estendeu esses dois mundos, o Céu e a
Terra, e fez com que o sol brilhasse" (VIII, 3, 6). Depois desse feito
demiúrgico, Indra designa Varuna como cosmocrata e guardião do rta (que
permanecera oculto no mundo inferior; R. V., I, 62, 1). Como veremos (§ 75),
existem outros tipos de cosmogonia indianas que explicam a criação do mundo a
partir de uma matéria prima. Isso não
acontece com o mito que acabamos de resumir, pois aqui já exigia um certo tipo
de "mundo". Efetivamente, o Céu e a Terra estavam formados e tinham
gerado os deuses. Indra nada mais fez do que separar os pais cósmicos e,
fulminando vrtra com um raio, pôs fim à imobilidade, e até à
"virtualidade", simbolizada pelo modo de ser do dragão. De acordo com
certas tradições, o "formador" dos deuses, Tvastr, cujo papel não está claro no Rig Veda, construíra para si
uma casa e criou Vrtra como uma espécie de teto, mas também de paredes para
essa habitação. No interior da casa, cercada por Vrtra, existiam o Céu, a Terra
e as Águas, Indra fez com que se rompesse essa mônada primordial, quebrando a
"resistência" e a inércIa de Vrtra. Em outras palavras, o mundo e a
vida só puderam nascer com a execução de um Ser primordial amorfo. Muitas são
as variantes em que esse mito se acha difundido, e, na própria Índia, vamos
encontrá-lo no desmembramento de Purusa pelos deuses e no auto-sacrifício de
Prajâpati. No entanto, Indra não realiza um sacrifício, mas, na qualidade de
guerreiro, mata o adversário exemplar, o dragão primordial, encarnação da
"resistência" e da inércia.
O mito é
multivalente; ao lado do seu significado cosmogônico, há valências
"naturistas" e "históricas". O combate de Indra servia de
modelo às batalhas que os arianos tiveram de sustentar contra os Dasyus (aliás
denominados vrtâni). "Aquele que
triunfa numa batalha mata realmente Vrtra" (Maitrâyani-Samhitâ, II, 1, 3).
É provável que na época antiga o combate entre Indra e Vrtra constituísse a
encenação mítico-ritual das festas do Ano Novo, que garantia a regeneração do
mundo. Se esse deus é a um só tempo paladino infatigável, demiurgo e epifania
das forças orgiásticas e da fertilidade universal, é porque a violência provoca
o aparecimento da vida, aumenta-a e regenera-a. Mas, muito cedo, a especulação
indiana utilizará esse mito como ilustração da biunidade divina e, por
conseguinte, como exemplo de uma hermenêutica que visa à revelação da realidade
última.
69. Agni, o capelão dos Deuses: fogo
sacrificatório, luz, inteligência.
O papel
cultual do fogo doméstico já era importante j na época indo-européia. Trata-se,
certamente, de um costume pré-histórico, amplamente atestado aliás em muitas
sociedades primitivas. No Veda, o deus Agni representa a sacralidade do fogo no
seu mais alto grau, mas ele não , se deixa delimitar por essas hierofanias
cósmicas e rituais.
É filho de
Dyaus (R. V., I, 26, 10), tal como o seu homólogo iraniano, Atar, é filho de
Aúra-Masda (Yasna, 2, 12; etc.). Ele
"nasce" no Céu, de onde desce sob a forma de relâmpago, mas
encontra-se também na água, na inata, nas plantas. É, além disso, identificado
ao Sol.
Agni é
descrito ao mesmo tempo por suas epifanias ígneas e por atributos divinos que
lhe são específicos. Evocam-se os seus "cabelos de chama", a sua
"maxila de ouro", o barulho e o terror que ele produz. "Quando
te lanças sobre as árvores como um touro voraz, o teu rastro é negro..." (R.
V., I, 58, 4). Ele é o "mensageiro" entre
o Céu e a Terra, e é por seu intermédio que as oferendas chegam aos deuses. Mas
Agni é principalmente o arquétipo do sacerdote; chamam-lhe sacrificador ou
"capelão" (purohita). Eis
por que os hinos que lhe são consagrados estão colocados no começo do Rig Veda.
O primeiro hino começa com a seguinte estrofe: "Eu canto Agni, o capelão, o Deus do sacrifício, o sacerdote,
o fazedor de oblações que nos cumula de dádivas" (trad. para o francês por
Jean Varenne). Ele é eternamente jovem ("o Deus que, não envelhece",
R. V., I, 52, 2), pois renasce a cada novo fogo. Como "senhor da
casa" (grihaspati) , Agni
expulsa as trevas, afasta os demônios, protege contra as doenças e a
feitiçaria. É por essa razão que as relações dos homens com Agni são mais
íntimas do que com os outros deuses. É ele quem "dispensa, legando a quem
os merece, os bens desejáveis" (I, 58, 3). Invocam-no com confiança:
"Conduze-nos, ó Agni, à riqueza pelo bom caminho...poupa-nos a falta que
desorienta...poupa-nos as doenças. Protege-nos sempre, Agni, com os teus
guardas infatigáveis... Não nos abandones ao mau, ao destruidor, ao mentiroso e
ao infortúnio" (I, 187, 1-5; trad. francesa de Varenne).
Embora
onipresente na vida religiosa - pois o fogo sacrifical desempenha um papel
considerável -, Agni não dispõe de uma mitologia apreciável. Entre os raros
mitos que lhe dizem respeito diretamente, o mais célebre é o de Mâtarisvan, que
trouxera o fogo do céu. No plano cosmológico, o seu papel é aparentemente
confuso, mas importante. Por um lado, ele é chamado o "Embrião das
Águas" (âpam garbhah; m, I,
12-13) e é evocado elevando-se da matriz das Águas, as Mães (X, 91, 6). Por
outro lado, julga-se que ele penetrou nas Águas primordiais e as fecundou.
Trata-se certamente de uma concepção cosmológica arcaica: a criação pela união
de um elemento ígneo (fogo, calor, luz, semen
virile) e do princípio aquático (Aguas, virtualidades; soma). Encontrar-se-ão certos atributos de Agni (calor, cor dourada
- pois se lhe atribui um corpo de ouro, R. V., IV, 3, 1; X, 20, 9 -, forças
espermáticas e criadoras) nas especulações cosmológicas elaboradas em torno de
Hiranyagarbha (o Embrião de Ouro) e Prajâpati (§ 75).
Os hinos
enfatizam as faculdades espirituais de Agni: ele é um rishi dotado de grande inteligência e de clarividência. A fim de
que possamos apreciar na sua justa medida tais especulações, cumpre levarmos em
conta as inumeráveis imagens e sÍmbolos revelados pela "imaginação
criadora" e pelas meditações a respeito do fogo, das chamas, do calor.
Tudo isso constituía, aliás, uma herança que era transmitida desde a
pré-história. O gênio indiano nada mais fez do que elaborar, articular e
sistematizar essas descobertas imemoriais. Encontraremos nas especulações
filosóficas posteriores algumas dessas imagens primordiais relacionadas com o
fogo; como, por exemplo, o conceito do jogo divino criador (lilâ), explicado a partir do "jogo" das chamas. Quanto à
assimilação fogo (luz) -inteligência, é universalmente difundida.
Eis como
melhor se avalia a importância de Agni na religião e na espiritualidade
indianas: ele provocou inumeráveis meditações e especulações cosmobiológicas,
facilitou sínteses que visam à redução de múltiplos e diferentes planos a um
principio fundamental único. É certo que Agni não foi o único deus indiano a
nutrir tais sonhos e reflexões, embora se situe na primeira fila. Já na época
védica, era identificado com tejas, "energia
ígnea, esplendor, eficácia, majestade, poder sobrenatural" etc.
Implora-se-lhe nos hinos que gratifique esse poder (A. V., VII, 89, 4). Mas a
série de identificações, assimilações e solidarizações -- processo especifico
ao pensamento indiano -- é muito mais vasta. Agni, ou um dos seus homólogos, o
Sol, está implicado nos philosophoúmena que
visam a identificar a luz ao âtman e
ao semen virile. Graças aos ritos e
às asceses que dão continuidade ao aumento do "calor interior", Agni
é também solidário, se bem que às vezes indiretamente, da valorização religiosa
do "calor ascético" (tapas) e
das práticas da ioga.
70. O deus Soma e a bebida da
"não-morte".
Com os 120
hinos que lhe são consagrados, Soma aparece como o terceiro no panteão védico.
Um livro inteiro do Rig Veda, o IX, é dedicado ao Soma pavamâna, o soma "que
está sendo clarificado". Ainda mais do que no caso de Agni, é difícil
separar a realidade ritual - a planta e a bebida - do deus que tem o mesmo
nome. Os mitos são desprezíveis. O mais importante relata a origem celeste do soma: uma águia, "voando até o
céu", precipitou- se "com a rapidez do pensamento e forçou a
fortaleza de bronze" (R. V., VIII, 100, 8). A ave apodera-se da planta e a
traz de volta à Terra. Mas julga-se que o soma
cresce nas montanhas; o que não constitui, a não ser aparentemente, uma
contradição, pois os cimos pertencem ao mundo transcendental, já estando
assimilados ao céu. Por outro lado, outros textos precisam que o soma cresce "no umbigo da Terra,
sobre as montanhas" (R. V., X, 82, 3), ou seja, no Centro do Mundo, no
local onde a passagem entre a Terra e o Céu se tornou possível.
Soma só
dispõe dos atributos usuais, que se conferem aos deuses em geral: é
clarividente, inteligente, sábio, vitorioso, generoso etc. É proclamado amigo e
protetor dos demais deuses; em primeiro lugar, ele é o amigo de Indra.
Chamam-lhe também o Rei Soma, sem dúvida pela sua importância ritual. Sua
identificação com a Lua, desconhecida no Avesta, só é claramente atestada na
época pós-védica.
Muitos
detalhes relacionados com a prensagem da planta são simultaneamente descritos
em termos cósmicos e biológicos: o barulho surdo produzido pela mó inferior é
assimilado ao trovão, a lã do filtro representa as nuvens, o suco é a chuva que
faz crescer a vegetação etc. A prensagem é ainda identifIcada" com a união
sexual. Mas todos esses símbolos da fertilidade biocósmica dependem em última
instância do valor "místico" do Soma.
Os textos
insistem nas cerimônias que precedem e acompanham a aquisição da planta, e
sobretudo na preparação da bebida. Desde o Rig Veda, o sacrifício do sonza era o mais popular, "a alma e
o centro do sacrifício" (Gonda). Seja qual for a planta utilizada nos
primeiros séculos pelos indo-arianos, é certo que mais tarde ela foi
substituída por outras espécies botânicas. O somal haoma é a fórmula indo-iraniana da bebida da
"não-morte" (amrta); provavelmente,
ele substituiu a bebida indo-européia madhu,
o "hidromel ".
Todas as
virtudes do soma são solidárias da
experiência extática ocasionada pela sua absorção. "Bebemos o soma", lê-se num hino célebre
(VIII, 48), "e nos tornamos imortais; tendo chegado à luz, encontramos os
Deuses. O que nos pode atualmente fazer a impiedade ou a malícia do mortal, ó
imortal?" (estrofe 3). Implora-se ao Soma
que prolongue "o nosso tempo de vida"; pois ele é "o
guardião do nosso corpo" e "as debilidades, as doenças empreenderam a
fuga" (trad. francesa de L. Renou). O soma
estimula o pensamento, reanima a coragem do guerreiro, aumenta o vigor
sexual, cura as enfermidades. Bebido em comum pelos sacerdotes e pelos deuses,
ele aproxima a Terra do Céu, retorça e prolonga a vida, garante a fecundidade.
Na verdade, a experiência extática revela ao mesmo tempo a plenitude vital, o
sentido de uma liberdade sem limites, a posse de forças físicas e espirituais
apenas suspeitadas. Donde o sentimento de comunidac1e com os deuses, ou até de
pertencimento ao mundo divino, a certeza da "não-morte", isto é, em
primeiro lugar, de uma vida plena indefinidamente prolongada. Quem fala no
célebre hino X, 119, o deus ou o indivíduo em êxtase que acabava de engolir a
bebida sagrada? "As cinco tribos (humanas) não me pareceram sequer dignas
de um olhar - pois não bebi eu o soma?"
A personagem enumera as suas façanhas: "Dominei o céu com o meu
tamanho, dominei a vasta terra... Vou golpear fortemente esta terra... Tracei
no céu uma das minhas asas; a outra, tracei-a aqui embaixo... Sou grande,
grande, eu me arremessei até as nuvens - pois não bebi eu o soma?" (trad. francesa de Renou).
Não nos deteremos nos sucedâneos e substituições da planta original no culto. É
o papel desempenhado por essas experiências sômicas no pensamento indiano que é
importante. Muito provavelmente tais experiências estavam limitadas aos
sacerdotes e a determinado número de sacrificadores. Mas tiveram uma
ressonância considerável graças aos hinos que as exaltavam e graças sobretudo
às interpretações que elas suscitaram. A revelação de uma existência plena e
beatifica, em comunhão com os deuses, continuou a obsedar a espiritualidade
indiana muito tempo depois do desaparecimento da bebida original. Procurou- se,
pois, alcançar uma tal existência com o auxílio de outros meios: a ascese ou os
excessos orgíacos, a meditação as técnicas da Ioga, a devoção mística. Como
veremos a Índia arcaica conhece vários tipos de extáticos. De mais a mais, a
busca da liberdade absoluta deu lugar a toda uma série de métodos e philosóphema. que, no final das contas,
redundaram em novas perspectivas, insuspeitadas na época védica. Em todos esses
desenvolvimentos posteriores, o deus Soma
desempenhou um papel antes de tudo apagado; foi o princípio cosmológico e sacrifical que ele significava que acabou
por prender a atenção de teólogos e metafísicos.
71. Dois Grandes Deuses na época védica:
Rudra-Xiva e Vishnu.
Os textos
védicos invocam além disso um certo número de divindades. A maior parte perderá
gradualmente a sua importância e acabará por ser esquecida, ao passo que
algumas chegarão posteriormente a uma posição inigualada. Entre as primeiras,
lembremos a deusa da aurora, Usas, filha do Céu (Dyaus); Vâyu, deus do vento e
de seus homólogos, a "respiração" e a "alma cósmica";
Parjanya, o deus da tempestade e da estação chuvosa; Surya e Savitri,
divindades solares; Púsan, antigo deus pastoral em desaparecimento (ele quase
não tem culto), guardião das estradas e guia dos mortos, que foi comparado a
Hermes; os gêmeos Açvins (ou Nâsatya), filhos de Dyaus, heróis de numerosos
mitos e lendas que lhes asseguram um lugar preponderante na literatura
posterior; os Maruts, filhos de Rudra, grupo de "rapazes" (marya) que Stig Wikander interpretou
como o modelo mítico de uma "sociedade de homens" de tipo
indo-europeu.
A segunda
categoria é representada por Rudra-Xiva e Vishnu. Ocupam um lugar modesto nos
textos védicos, mas na época clássica se tornarão Grandes Deuses. No Rig Veda,
Vishnu aparece como uma divindade benévola em relação aos homens (I, 186, 10),
amigo e aliado de Indra, a quem ajuda em seu combate contra Vrtra, estendendo
mais tarde o espaço entre o Céu e a Terra (VI, 69, 5) . Ele atravessou o espaço
em três passadas, atingindo, na terceira, a morada dos deuses (I, 155, 6). Esse
mito inspira e justifica um rito nos Bramanas: Vishnu é identificado ao
sacrifício (Satapatha Br., XIV, I, 1,
6) e o sacrificado, imitando ritualmente as suas três passadas, é assimilado ao
deus e atinge o Céu (I, 9, 3, 9 s.). Vishnu parece simbolizar ao mesmo tempo a
extensão espacial ilimitada (que torna possível a organização do Cosmo), a
energia benéfica e onipotente que exalta a vida, e o eixo cósmico que escora o
mundo. O Rig Veda (VII, 99, 2) afirma que ele sustenta a parte superior do
Universo. Os Bramanas insistem em suas relações com Prajâpati, atestadas desde
a época védica. Mas só mais tarde, nos Upanixades da segunda categoria
(contemporâneos da Bhagavad-Gítâ, e
portanto mais ou menos no século IV a. C . ), é que Vishnu é exaltado como um
deus supremo de estrutura monoteÍsta. : Mais adiante insistiremos nesse
processo, especifico aliás à criação religiosa indiana. Morfologicamente, Rudra
representa uma divindade de gênero oposto. Não possui amigos entre os deuses, e
não ama os homens, a quem amedronta com o seu furor demoníaco e dizima com
doenças e desastres. Rudra usa os cabelos trançados (R. V., 11, 114, 1, 5) e é
de cor marrom-escura (11, 33, 5); tem o ventre negro e as costas vermelhas,
arma-se de um arco e de flechas, veste-se com peles de animais e habita as
montanhas, sua morada preferida. É associado a numerosos seres demoníacos. A
literatura pós-védica acentua ainda mais o caráter maléfico do deus. Rudra mora
nas florestas e nos jângales, é chamado de "Senhor dos animais
selvagens" (Sat. Br., XII, 7, 3,
20), e protege aqueles que se mantêm afastados da sociedade ariana. Enquanto os
deuses residem no Oriente, Rudra habita o Norte (i.e., o Himalaia). Está excluído do sacrifício do soma e recebe apenas as oferendas de
alimentos que se jogam no chão (bali) ou
os restos das oblações e das oferendas sacrificais estragadas (Sat. Br., 1, 7, 4,9). Os epítetos
acumulam-se: chamam-lhe Xiva, "o gracioso", Hara, "O
destruidor", Shamkara, "o salutar", Mahâdeva, "O grande
deus".
Segundo os
textos védicos e os Bramanas, Rudra-Xiva parece uma epifania das potências
demoníacas (ou pelo menos ambivalentes) que povoam os lugares selvagens e
desabitados; simboliza tudo o que é caótico, perigoso, imprevisível; inspira o
terror, mas a sua magia misteriosa também pode ser dirigida para objetivos
benéficos (ele é o "médico dos médicos"). Muito se discutiu sobre a
origem e a estrutura primordial de Rudra-Xiva, considerado por alguns não só o
deus da morte, mas também da fertilidade (Arbman), cheio de elementos
não-arianos (Lommel), divindade da classe misteriosa dos ascetas vrátya (Hauer). As etapas da
transformação do Rudra-Xixa védico em Deus Supremo, tal como ele emerge na Svetásvatara-Upanishad, nos escapam.
Parece certo que, com o passar do tempo, Rudra-Xiva assimilou - tal como a
maioria dos outros deuses - muitos elementos da religiosidade popular, ariana
ou não-ariana. Mas, por outro lado, seria temerário acreditar que os textos
védicos nos transmitiram a "estrutura primordial" de Rudra-Xiva. É
preciso ter sempre em mente que os hinos védicos e os tratados bramânicos foram
compostos para uma elite, a aristocracia e os sacerdotes, e que uma parte
ponderável da vida religiosa da sociedade ariana era rigorosamente ignorada.
Entretanto, a promoção de Xiva à categoria de Deus Supremo do hinduísmo não
pode ser explicada pela sua "origem", mesmo que tenha sido não-ariana
ou popular. Trata-se de uma criação cuja originalidade avaliaremos, quando
analisarmos a dialética religiosa indiana, tal como aparece na reintegração e
revalorização contínuas dos mitos, ritos e formas divinas.