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Alquimia Indiana

Ficha técnica:
O presente texto é um extrato do Livro de Mircea Eliade Ferreiros e Alquimistas. Lisboa: Relógio d’água, 1980.

A ALQUIMIA INDIANA
A alquimia como técnica espiritual também é atestada na Índia. Já estudamos em outro livro as suas numerosas afinidades com o Hatha-Yoga e o tantrismo,[1] motivo pelo qual só lembraremos aqui as mais importantes. A primeira delas é a tradição "popular", registrada igualmente por viajantes árabes e europeus, e que se refere aos iogues - alquimistas: estes conseguiriam, por meio da ritmização respiratória (prânâyâma) e da utilização de remédios vegetais e minerais, prolongar indefinidamente a sua juventude e também transformar os metais comuns em ouro. Um grande número de lendas refere-se aos milagres relacionados com a Ioga e com o faquirismo dos alquimistas: são capazes de voar, de tornar-se invisíveis etc. (ver Le Yoga, p. 276; cf. a Nota L). Observemos, de passagem, que os "milagres" dos alquimistas são os "poderes" iogas por excelência (siddhi).
A simbiose entre a Ioga tântrica e a alquimia é também atestada pela tradição culta a que se referem os textos sânscritos e vernáculos. Nâgârjuna, o famoso filósofo mâdhyamaka, é tido como autor de numerosos tratados alquímicos; entre os siddhi obtidos pelos iogues figura a transmutação dos metais em ouro; os mais célebres siddha tântricos (Capari, Kamari, Vyali etc.) são ao mesmo tempo renomados alquimistas; a somarasa, técnica específica da escola dos Nâtha Siddha, apresenta um significado alquímico; finalmente, no seu Sarva-darçana-samgraha, Madhava demonstra que a alquimia (raseçvara darçana, lit. "a ciência do mercúrio") é um ramo do Hatha-Yoga: "O sistema mercurial (rasâyana) não deve ser considerado um simples elogio do metal, porque é um meio imediato - pela conservação do corpo - de alcançar o supremo, a libertação." E o tratado alquímico Rasasiddhanta, citado por Madhava, afirma: "A libertação da alma vital (jiva) encontra-se exposta no sistema mercurial”.[2]
A história do termo rasâyana, "alquimia", é particularmente instrutiva. O vocábulo rasâ, lit. "sumo, suco", acaba por designar o mercúrio (por equívoco, Alberuni traduzia-o por "ouro"); rasâyana significa portanto a "via (ou o veículo) do mercúrio". Acontece que, na medicina tradicional indiana (Ayurveda), a seção dedicada ao rejuvenescimento chama-se justamente rasâyana. Além disso, o tratamento que visa à cura das doenças e, sobretudo, ao rejuvenescimento dos velhos consiste essencialmente em isolar o paciente num quarto escuro durante certo número de dias. No decurso dessa permanência nas trevas, o paciente experimenta um regressus ad uterum que lhe permite um "novo nascimento". Esse ritual médico prolonga de fato uma cerimônia iniciatória arcaica, nomeadamente a diksâ ("consagração"). O sacrificante é trancado num galpão especial, onde "os sacerdotes o transformam em embrião" (Aitareya Brahmâna, I, 3), a fim de lhe proporcionar um novo nascimento no mundo celeste (Çatapatha Br., VII, 3, 1, 12) e de "assimilá-lo aos deuses" (ibid., I, 1,8).[3] Em suma, um velho ritual iniciatório, que efetuava o retomo simbólico ao embrião seguido do renascimento em um nível espiritual superior ("divinização", "imortalização"), foi interpretado na medicina tradicional como um meio de rejuvenescimento e designado por um termo que acaba por designar a alquimia. Tal como na China, a alquimia indiana é solidária dos rituais arcaicos de "imortalização" e de "divinização" e dos métodos de rejuvenescimento com o auxilio de plantas e substâncias minerais.
Certas convergências entre a Ioga, sobretudo o Hatha-Yoga tântrico, e a alquimia impõem-se naturalmente ao espírito. A primeira delas é a analogia evidente entre, de um lado, o iogue que trabalha sobre o seu próprio corpo e a sua vida psicomental, e, de outro lado, o alquimista que opera sobre as substâncias: um e outro visam a "purificar" essas "matérias impuras", a "aperfeiçoa-las” e, finalmente, a transformá-las em "ouro". Porque, como vimos (p. 43), o "ouro é a imortalidade": é o metal perfeito e o seu simbolismo reúne-se ao simbolismo do Espírito puro, livre e imortal, que o iogue se esforça, através da ascese, por "extrair" da vida psicomental, "impura" e submissa. Em outros termos, o alquimista espera chegar aos mesmos resultados que o iogue, ao "projetar" a sua ascese sobre a matéria: em vez de submeter o seu corpo e a sua vida psicomental aos rigores da Ioga, a fim de conseguir separar o Espírito (purusha) de toda e qualquer experiência pertencente à esfera da Substância (prakrti), o alquimista submete os metais a operações químicas comparáveis às "purificações" e às "torturas" ascéticas. Existe de tato uma perfeita solidariedade entre a matéria física e o corpo psicossomático do homem: todos dois são produtos da Substância primordial (prakrti). Entre o mais vil dos metais e a experiência psicomental mais depurada, não há solução de continuidade. E a partir do momento em que, desde a época pós-védica, se esperavam da "interiorização" dos ritos e das operações fisiológicas (alimentação, sexualidade etc.) resultados que interessam à situação espiritual do homem, devia-se logicamente chegar a resultados análogos "interiorizando" as operações praticadas sobre a matéria: a ascese "projetada" pelo alquimista sobre a matéria equivalia, em suma, a uma "interiorização" das operações realizadas em laboratório.
Essa analogia entre os dois métodos verifica-se em todas as formas da Ioga, até mesmo da Ioga "clássica" de Patanjali. Quanto às diferentes espécies da Ioga tântrica, a sua semelhança com a alquimia é ainda mais nítida. Na verdade, o hatha-iogue e o tântrico pretendem transformar os seus respectivos corpos num corpo incorruptível, denominado "corpo divino" (divya-deha), "corpo da gnose" (jnâna-deha), "corpo perfeito" (siddha-deha) ou, em outros contextos, corpo do "liberto em vida" (jivan-mukta). O alquimista, por sua vez, busca a transmutação do corpo e sonha em prolongar indefinidamente a juventude, a força e a elasticidade. Em ambos os casos – Tantra - Yoga e alquimia - o processo da transmutação do corpo inclui uma experiência de morte e ressurreição iniciatórias (cf., de nossa autoria, Le Yoga, pp. 272 s.). De mais a mais, não só o tântrico como também o alquimista procuram dominar a "matéria": ao contrário do asceta ou do metafísico, não se retiram do mundo, mas sonham em conquistá-lo e em modificar-lhe o regime ontológico. Existem, em suma, boas razões para ver no sâdhana tântrico e na obra do alquimista esforços paralelos para libertar-se das leis do Tempo, para "descondicionar" a sua existência e conquistar a liberdade absoluta.
A transmutação dos metais pode ser colocada entre as "liberdades" que o alquimista chega a desfrutar: ele intervém ativamente nos processos evolutivos da Natureza (prakrti), e, sob certo prisma, pode-se até dizer que colabora na sua "redenção" (não há necessidade de esclarecer que esse termo não apresenta as indicações que o caracterizam na teologia cristã). Na perspectiva do Sâmkhya-Yoga, todo espírito (purusha) que conquistou a sua autonomia libera ao mesmo tempo um fragmento da prakrti, pois permite à matéria que constitui o seu corpo, a sua fisiologia e a sua vida psicomental reabsorver, reincorporar o modo primordial da Natureza ou, em outras palavras, alcançar o repouso absoluto. Ora, a transmutação operada pelo alquimista precipita o ritmo das transformações lentas da Natureza (prakrti) e, ao fazer isso, ajuda-a a libertar-se do seu próprio destino, tal como o iogue, ao forjar para si um "corpo divino", liberta a Natureza das suas próprias leis: consegue, efetivamente, modificar-lhe o estatuto ontológico, transformar o incansável devir da Natureza numa estase paradoxal e impensável (pois a estase pertence ao modo de ser do Espírito e não às modalidades da vida e da matéria viva).
Compreenderemos melhor tudo isso se estudarmos a ideologia, o simbolismo e as técnicas alquímicas em seu contexto ioga-tântrico e se levarmos em conta uma certa pré-história espiritual indiana, que comporta a crença nos homens - deuses, nos mágicos e nos imortais. A Ioga tântrica e a alquimia assimilaram e revalorizaram esses mitos e nostalgias, tal como o taoísmo e a alquimia fizeram, na China, com várias tradições imemoriais. Num trabalho anterior, estudamos a solidariedade entre as diferentes técnicas "místicas" indianas (cf. Le Yoga, pp. 292 s. e passim), motivo pelo qual não nos deteremos nesse tema.
O problema das origens históricas da alquimia indiana ainda não foi definitivamente solucionado. A acreditarmos em certos orientalistas (A. D. Keith, Lüders) e na maior parte dos historiadores das ciências (J. Ruska, Stapleton, Reinh. Müller, E. von Lippmann), a alquimia foi introduzida na Índia pelos árabes: assinalam sobretudo a importância do mercúrio na alquimia e o seu aparecimento tardio nos textos.[4] Entretanto, segundo alguns autores (Hoernle, por exemplo), o mercúrio já é atestado no Bower Manuscript do século IV de nossa era. Por outro lado, diversos textos budistas, que se distribuem entre os séculos II e V, mencionam a transmutação de metais e minerais em ouro. O Avatam-saka-suttra (séculos lI-IV) diz: "Existe um suco que se denomina Hataka. Um liang dessa solução pode transformar mil liangs de bronze em ouro puro." Mahâprajnâpâramitopadeça (traduzido para o chinês em 402- 405) precisa: "Por meio de drogas e de encantamentos, pode-se transformar o bronze em ouro. Através de um hábil emprego das drogas, a prata pode ser transformada em ouro e o ouro em prata. Pela força espiritual, um homem pode fazer a argila ou a pedra virar ouro." Finalmente, o Mahâprajnaparamitaçâstra de Nâgârjuna, traduzido para o chinês por Kumârajiva (de 397 a 400, portanto três séculos antes do surto da alquimia árabe, que começa com Jâbir ibn Hayyân, por volta de 760 A.D.), enumera entre os siddhi ("poderes maravilhosos") a transmutação "da pedra em ouro e do ouro em pedra". Nâgârjuna explica que a transformação das substâncias pode ser obtida tanto pelas ervas (osadhi) quanto pela "força do samâdhi", isto é, pela Ioga (Eliade, Le Yoga, pp. 278-279).
Em resumo, a crença na transmutação, assim como a fé na possibilidade de prolongar indefinidamente a vida humana, precederam, na Índia, a influência dos alquimistas árabes. O tratado de Nâgârjuna diz isso com todas as letras: a transmutação pode ser efetuada quer por meio de drogas, quer pela Ioga: a alquimia situa-se naturalmente, conforme vimos, entre as técnicas "místicas" mais autênticas. A dependência da alquimia indiana em relação à cultura árabe não está demonstrada: encontram-se a ideologia e as práticas alquímicas nos meios de ascetas e iogues, os quais serão muito pouco afetados pela influência islâmica quando da invasão da Índia pelos muçulmanos. Os Tantras alquímicos são encontrados sobretudo em regiões onde o islamismo penetrou muito superficialmente, como o Nepal e a terra dos tâmules. Mesmo se supusermos que o mercúrio foi introduzido na Índia pelos alquimistas muçulmanos, o fato é que ele não se encontra na origem da alquimia indiana: enquanto técnica e ideologia solidárias da Ioga tântrica, a alquimia já existia há vários séculos. O mercúrio veio acrescentar-se à série de substâncias já conhecidas e utilizadas pelos alquimistas indianos. Não é menos verdade que as experimentações realizadas com o mercúrio haveriam de conduzir necessariamente a uma pré-química rudimentar que se desenvolveu pouco a pouco junto à alquimia indiana tradicional.
Examinemos alguns textos alquímicos propriamente ditos; embora aparentemente menos obscuros que as obras dos alquimistas ocidentais, nem por isso revelam os verdadeiros segredos das operações. Mas, para nós, é suficiente que iluminem o campo onde se situam os experimentos alquímicos e nos permitam apurar as finalidades a que visam. O Rasaratnâkara, tratado atribuído a Nâgârjuna, descreve o adepto da seguinte maneira: "Inteligente, devotado ao seu trabalho, sem pecados e senhor das suas paixões”.[5] O Rasaratnasamuccaya (VII, 30) é ainda mais preciso: "Só aqueles que amam a verdade e venceram as tentações são perfeitamente senhores de si mesmos e se habituaram a viver segundo uma dieta e um regime apropriados, e só eles podem dedicar-se a operações alquímicas" (P.C. Ray, I, p. 117). O laboratório deve ser instalado na floresta, longe de qualquer presença impura (Rasaratnasamuccaya, em Ray, I. p. 115). O mesmo texto (livro VI) ensina que o discípulo deve respeitar o seu mestre e venerar a Xiva, pois a alquimia foi revelada pelo próprio deus Xiva; além disso, deve fazer para Xiva um falo mercurial e participar de certos rituais eróticos (Ray, I, pp. 115-116), o que ilustra da maneira mais clara possível a simbiose alquímico-tântrica.
O Rudrayamâlâ Tantra chama a Xiva "o deus do mercúrio" (Ray, II, p. 19). No Kubjika Tantra, Xiva refere-se ao mercúrio como o seu princípio gerador e gaba-lhes a eficácia quando foi "fixado" seis vezes. O léxico de Maheçvara (século XII A.D.) assinala também como sinônimo de mercúrio o termo Harabija (lit.: "sêmen de Xiva"). Por outro lado, em alguns Tantras o mercúrio passa por ser o princípio gerador" de todas as criaturas. Quanto ao falo mercurial destinado a Xiva, diversos Tantras prescrevem a maneira de faze-lo.[6]
Junto ao significado químico da "fixação" (ou "morte") do mercúrio, existe sem dúvida um sentido puramente alquímico, vale dizer, na índia, ioga-tântrico. Reduzir a fluidez do mercúrio equivale à parado- xal transmutação do fluxo psicomental numa "consciência imóvel", sem modificação alguma e portanto sem duração. Em termos de alquimia, "fIXar" ou "matar" o mercúrio equivale a obter a cittavrttinirodha (a supressão dos estados de consciência), finalidade última da Ioga. Daí decorre a ilimitada eficácia do mercúrio fixado. O Suvarna Tantra afirma que, ao comer o "mercúrio morto" (nasta-pista), o homem toma-se imortal; uma pequena quantidade desse "mercúrio morto" pode transformar em ouro uma quantidade de mercúrio 100.000 vezes maior. Até mesmo com a urina e os excrementos do alquimista alimentado com tal mercúrio pode-se conseguir a transmutação do cobre em ouro.[7] O Kâkacandeçvarimata Tantra assegura que o mercúrio "morto" produz mil vezes a sua quantidade de ouro e, misturado com o cobre, transforma-o em ouro (texto reproduzido por Ray, II, p. 13). O Rudrayamâlâ Tantra (I, 40) descreve o nasta-pista como algo sem brilho e sem fluidez, menos pesado que o mercúrio, colorido etc. A mesma obra proclama que o processo alquímico de "matar" o mercúrio foi revelado por Xiva e transmitido em segredo de uma geração de adeptos à outra.[8] Segundo o Rasaratnasamuccaya, I, 26, ao assimilar o mercúrio, o homem evita as doenças causadas pelos pecados das suas vidas anteriores (Ray. I, p. 78). O Rasaratnacara, III, 30-32, menciona um elixir extraído do mercúrio para a transmutação do corpo humano em corpo divino (Ray, II, p. 6). No mesmo texto, Nâgârjuna pretende dar remédios para "a eliminação das rugas e dos cabelos brancos, e de outros sinais de velhice" (Ray, II, 7). "Os preparados minerais atuam com igual eficácia sobre os metais e o corpo humano" (ibidem). Essa metáfora favorita dos alquimistas indianos ilustra uma das suas concepções fundamentais: tal como o corpo humano, os metais podem ser "purificados" e "divinizados" por meio de preparados mercuriais, que lhes comunicam as virtudes salvadoras de Xiva; porque Xiva, para todo o mundo tântrico, é o deus da libertação. O Rasârnava recomenda que se aplique o mercúrio primeiramente sobre os metais e em seguida sobre o corpo humano.[9] Se tivermos de acreditar no Rasahrdaya Tantra, a alquimia permite curar até a lepra e devolver aos velhos a perdida juventude (texto em Ray, II, p. 12).
Essas poucas citações, que seria fácil multiplicar, salientaram suficientemente o caráter da alquimia indiana: não é uma pré-química, mas uma técnica solidária dos outros métodos de "fisiologia sutil" elaborados pelo Hatha-Yoga e pelo tantrismo, e que perseguem um objetivo análogo: a transmutação do corpo e a conquista da liberdade. Isso aparece claramente num tratado como o Rasendracintâmani, que dá o máximo de indicações sobre a preparação e o uso do "mercúrio morto". Vejamos o trecho essencial: "Quando o mercúrio é morto com uma quantidade igual de enxofre depurado, toma-se cem vezes mais eficaz; quando morto com uma quantidade dupla de enxofre, o mercúrio cura a lepra; morto com uma quantidade tripla, cura a fadiga mental; morto com uma quantidade quádrupla, transforma as cãs em cabelos pretos e elimina as rugas; morto por uma quantidade cinco vezes maior, o mercúrio cura a tuberculose; morto por uma quantidade seis vezes maior, converte-se numa panacéia para todos os males humanos" (texto publicado por Ray, II, pp. 55-56). Não se demora em perceber o valor "místico" de todas essas operações. O seu valor científico propriamente químico é nulo. Sabe-se que a proporção máxima da combinação do mercúrio com o enxofre é de 25 para 4. Acima dessa proporção, o excedente de enxofre sublima-se sem combinar-se. No passo citado, o autor do Rasendracintâmani traduz em termos de operações químicas lugares- comuns da medicina mágica e do Batha - Yoga sobre a panacéia universal e o rejuvenescimento.
Isso não quer dizer, evidentemente, que os hindus tenham sido incapazes de realizar descobertas "científicas". Tal como o seu colega ocidental, o alquimista indiano constituiu os elementos de uma pré-química desde o momento em que, abandonando o campo de referência estritamente tradicional, aplicou-se a estudar objetivamente os fenômenos e a realizar experimentações, com a intenção de completar os seus conhecimentos sobre as propriedades da matéria. Os sábios hindus revelaram-se capazes de observações exatas e de pensamento científico, e muitas de suas descobertas chegaram mesmo a sobrepujar as do Ocidente. Para darmos apenas alguns exemplos, os hindus conheciam desde o século XII a importância que tinham as cores da chama para a análise dos metais.[10] Segundo P.C. Ray, os processos metalúrgicos foram descritos com maior precisão pelos autores hindus, três séculos antes de Agripa e Paracelso. Na farmacopéia, os hindus tinham chegado a resultados surpreendentes: muito tempo antes dos europeus, já recomendavam o uso interno de metais calcinados. Paracelso foi quem primeiro procurou impor o uso interno do sulfeto de mercúrio: ora, esse remédio já era utilizado na índia no século X.[11] Quanto ao uso interno do ouro e de outros metais, acha-se suficientemente atestado na medicina indiana desde Vâgbhata.[12]
Segundo P.C. Ray, Vrinda e Cakrapâni inauguram o período de transição da medicina indiana, durante o qual o uso de substâncias minerais rouba a supremacia às substâncias vegetais da época precedente. Apesar de tudo, subsistem algumas influências tântricas na obra desses dois autores, que recomendam gestos e fórmulas próprias do culto tântrico (Ray, I, p. LVI). É na época subseqüente ao período tântrico, chamada por Ray de iatroquímica, que surgem preocupações mais "científicas", isto é, mais empíricas. A procura do Elixir e outras preocupações "místicas" desaparecem, sendo substituídas por receitas técnicas de laboratório (Ray, I, p. XCI). O Rasaratnasamuccaya (séculos XIII-XIV) é uma produção típica desse tempo. É muito mais significativo encontrar numa obra desse gênero vestígios da alquimia tradicional.
O Rasaratnasamuccaya começa com uma saudação a Deus, que salva os seres humanos da velhice, da doença e da morte (Ray, I, p. 76); segue-se uma lista de alquimistas, entre os quais se encontram os nomes ilustres dos mestres tântricos (ibid., p. 77). O tratado comunica as fórmulas místicas por meio das quais se procede à "purificação" dos metais,[13] fala do diamante[14] "que vence a morte", do uso interno do ouro etc. (Ray, I, p. 105). Tudo isso vem provar a persistência da função espiritual da alquimia mesmo numa obra tardia que, aliás, contém muitas indicações precisas e descrições cientificamente exatas.[15]
De vez em quando, encontram-se nos textos alquímicos afirmações desta natureza: "Só vou expor os processos que pude verificar através dos meus próprios experimentos”.[16] Temos boas razões para indagar se os experimentos se referem a operações puramente químicas ou se se trata também de experimentos tântrico-alquímicos. Acontece que toda uma tradição ascética e mística da Índia invoca em seu favor o testemunho do experimento; por oposição àquilo que se pode chamar de a via metafísica e abstrata, a importante corrente espiritual que compreende a Ioga, o tantrismo e sobretudo as escolas de Batha-Yoga, atribui um valor apreciável ao "experimento": é "atuando", "operando" sobre os diversos planos da sua vida fisiológica e psicomental, que o iogue obtém resultados concretos que vão levá-lo pouco a pouco ao limiar da libertação. Uma parte importante da elite espiritual indiana voltou-se, desde a mais recuada Antigüidade, para a "experimentação", ou seja, para o conhecimento direto, experimental, de tudo o que constitui os fundamentos e os processos do corpo humano e da vida psico-mental. Talvez devamos lembrar os resultados consideráveis alcançados pelos iogues no que tange ao controle do sistema vegetativo e ao domínio do fluxo psicomental.
Ora, como vimos, a alquimia encaixa-se nessa tradição experimental pan-indiana. Disso resulta que o alquimista que proclama a importância do experimento não demonstra necessariamente um "espírito científico" no sentido moderno da expressão: o que faz é valer-se de uma grande tradição indiana, por oposição às outras, especialmente a tradição escolástica ou a tradição especulativa. Não se pode ter a menor dúvida sobre a realidade das operações alquímicas: não se trata de especulações, mas de experimentos concretos, efetuados em laboratório, com as diversas substâncias minerais e vegetais. Mas para que se compreenda a natureza desses experimentos, deve-se levar em conta não só o objetivo do alquimista e do seu comportamento, como também o que podiam ser as "substâncias" aos olhos dos indianos: sobre não serem inertes, representavam estágios da inesgotável manifestação da Matéria primordial (prakrti). Já dissemos que as plantas, as pedras e os metais, tanto quanto os corpos dos homens, a sua fisiologia e a sua vida psicomental, não passavam de momentos diversos de um mesmo processo cósmico. Era, portanto possível passar de um estágio a outro, transmudar uma forma em outra.
Mais ainda: o contato operacional com as "substâncias" não estava desprovido de conseqüências de ordem espiritual, tal como se verificou, no Ocidente, desde a constituição da química científica. Trabalhar ativamente nos minerais e nos metais era tocar na prakrti, modificar-lhe as formas, intervir na sua evolução. Ora, no universo ideológico onde se move o alquimista, e que é o universo do tantrismo, a prakrti não é apenas o princípio cosmológico do Sâmkhya e da Ioga clássicos; a prakrti é a modalidade primordial da Deusa, da Çakti. Graças ao simbolismo e às técnicas elaboradas pelo tantrismo, a prakrti torna-se acessível à experiência imediata: para o tantrismo, toda mulher nua encarna a prakrti, e a revela. Não se trata, é claro, de uma experiência erótica ou estética; a respeito de experiências dessa natureza, a Índia possuía, há muito tempo, toda uma literatura. Mas o tantrismo julga que, com uma preparação psicossomática e espiritual apropriada, o homem pode obter a revelação da modalidade primordial da Natureza contemplando o corpo nu de uma mulher.
Tudo isso equivale a dizer que, para o alquimista indiano, as operações com as substâncias minerais não eram, e não podiam ser, simples experimentações químicas: envolviam, muito pelo contrário, a sua situação cármica - em outros termos, tinham conseqüências espirituais decisivas. Somente quando as substâncias minerais tiverem sido esvaziadas de suas virtudes cosmológicas e se tiverem convertido em objetos inanimados é que se tornará também possível a ciência química propriamente dita. Tal modificação radical de perspectivas permitirá a constituição de uma nova escala de valores e tomará possível o aparecimento (ou seja, a observação e o registro) dos fenômenos químicos. Pois, de acordo com o axioma que, com justiça, encanta os cientistas modernos, a sucessão é que cria os fenômenos.

NOTA L
A ALQUIMIA INDIANA
Para o estudo da alquimia e da pré-química indianas, ver P.C. RAY, A History of Hindu Chemistry, vol. I (211 edição, Calcutá, 1903), vol. II (211 edição, Calcutá, 1925); cf. também Rasacharya Kaviraj Bhudeb MOOKERJEE, Rasajala-nidhi or Ocean of Indian Medicine, Chemistry and Alchemy, 2 vols. (Calcutá, 1926-1927): compilação sem valor, mas que contém um grande número de citações das obras alquímicas tradicionais. Para uma exposição da doutrina das siddha alquímicas, ver V. V. Raman SASTRI, "The Doctrinal Culture and Tradition of the Siddhas" (Cultural Heritage of India, Sri Ramakrishna Centenary Memorial, Calcutá, s. d., vol. 11, pp. 303-319); Shashibbusan DASGUPTA, Obscure Religious Cults as Background of Bengali Literature (Calcutá, 1946), pp. 289 s.; Mircea ELlADE, Le Yoga. Immortalité et Liberté, pp. 299 s. Encontram-se, na Birmânia, crenças análogas às referentes aos jogues alquimistas. Um indivíduo torna-se zawgy (vocábulo derivado do yogi) ao absorver substâncias preparadas à base de mercúrio ou de ferro. A meio caminho de sua prática, o postulado obtém "a pedra do metal vivo". A sua posse lhe permite voar nos ares e viajar sob a terra; torna-se invulnerável e pode viver centenas de anos. Essa pedra cura qualquer tipo de doença; ao tocar o cobre amarelo ou a prata, ela as transforma em ouro. Quando o postulante engole a pedra, fica in'consciente durante sete dias. Geralmente ele se recolhe a uma gruta e reaparece, ao fim de sete dias, na qualidade de zawgy. Desde então assemelha-se a um deus; pode viver milhões de anos, é capaz de ressuscitar os mortos e torna-se invisível. São-lhe permitidas as relações sexuais, não com mulheres, mas com certos frutos que têm a forma e o tamanho de uma jovem. O zawgy dá vida a esses frutos e faz deles suas esposas. Ver Maung HSIN, AUNG, "Alchemy and Alchemist in Burma", Folklore, 44, 1933, pp. 346-354, especialmente pp. 346-347, e "Burmese Alchemy Beliefs", Journal of the Burmese Research Society, 35, pp. 83-91. Para as relações entre a alquimia, o tantrismo e o Hatha-Yoga, ver M. ELIADE, Le Yoga, pp. 274 s., 398 s. (bibliografias). Ver também A. WALEY, "References to Alchemy in Buddhist Scriptures" (Bulletin of the School of Oriental Studies, Londres, vol. VI, pp. 1.102-1.103). Encontram-se ainda alusões à alquimia em Mahâyâna-samgrahabhasya (Nanjio, 1171; traduzido para o chinês por Hsüan-tsang, verso 650) e em Abhidharma Mahâvibhâsâ (Nanjio, 1263; trad. Hüsang-tsang, 656- 659). Cf. também O. STEIN, "Référence to Alchemy in Buddhist Scriptures" (BulI. School Oriento Studies, VII, 1933, pp. 262 s.). Sobre o alquimista Nâgârjurna, ver o estado das questões e as bibliografias em nossa obra Le Yoga, p. 398. Sobre Albiruni, cf. J. FILLlOZAT, Albiruni et I'alchimie indienne (AI-Biruni Commemoration Volume, Calcutá, 1951, pp. 101-105). Sobre o papel do mercúrio na alquimia indiana, P.C. RA Y, op. cit., I, p. 105 da Introdução; E. von LIPPMANN, Enstehung und Ausbreitung der Alchimie (Berlim, 1919), p. 435; vol. II (Berlim, 1931), p. 179; Julius JOLLY, "Der Stein der Weisen" (Windisch Festschrift, Leipzig, 1914) pp. 98-106. Sobre os sittar tamul, cf. A. BARTH, Ouvres, I (Paris, 1914), p. 185; J. FILLlOZAT, Journal Asiatique, 1934, pp. 111-112: Os sittar dividiam os sarakku (substância, ingredientes) em ân e pensarakhu, ingredientes machos e fêmeas, grupamento que lembra o binômio yin-yang da especulação chinesa. L. WIEGER, (Histoire des croyances religieuses et des opinions philosophiques en Chine, 2a ed., Hien-hien, 1927, p. 395) pensa que a alquimia taolsta Ko Hung (Pao P'u-tzu) do século III havia imitado o tratado Rasaratnâkara, atribuído a Nâgârjuna. Nesse caso, o Rasaratnâkara, que era tido como do século VII ou VIII (cf. E. LAMOTTE, Traité de Ia Grande Vertu de Sagesse, I, Louvain, 1944, p. 383, nota I), "poderia remontar realmente à época do Nâgârjuna budista do século III." (J.FILLlOZAT, La Doctrine classique de Ia médecine indienne, Paris, 1949, p. 10). Mas existe também a possibilidade de que a alquimia tamul tenha sofrido a influência chinesa (cf. J. FILLlOZAT, "Taoisme et Yoga", in Dân Vié't-Nam, n.3, agosto de 1949, pp. 113-120, esp. p. 120). Sobre os manuscritos alquímicos do fundo Cordier, ver J. FILLlOZAT, Journal Asiatique, 1934, pp. 156 s.

NOTA M

O SAL AMONIACO NA ALQUIMIA ORIENTAL

O nome sânscrito do sal amoníaco é navasâra, o nome iraniano nôshâdar. H.E. Stapleton tentou explicar esses termos pelo chinês nausha: ver "Sal-Ammoniac. A Study in Primitive Chemistry" (Memoirs of the Asiatic Society of Bengal, vol. I, n. 2, pp. 25-42, Calcutá, 1905); cf. STAPLETON e R.F. Azo, "Chemistry in Iraq and Persia in the Xth Century A.D." (Memoirs of the Asiatic Society of Bengal, vol. VIII, n. 61, 1927), p. 346, nota 1. B. LAUFER demonstrou a inconsistência dessa hipótese; ver Sino-lranica (Field Museum, Chicago, 1919), p. 505. O sal amoníaco foi utilizado pela primeira vez na alquimia iraniana, e dela passou para as alquimias chinesa, indiana e árabe. Ver sobre esse problema Julius RUSKA, Sal ammoniacus, Nusâdir und Salmiak (Sitzungsberichte der Heidelberger Akademie der Wissenschaften, Heidelberg, 1925); id., Das Buch der Alaune und Salze (Berl im, 1931), pp. 111, 195 s. O termo árabe nushadir deriva do nôshâdar iraniano. É possível que a descoberta e a aplicação alquímica do sal amoníaco se deva a uma das "escolas alquímicas do Império Sassânida"; cf. Henri CORBIN, "Le livre du Glorieux de Jâbir ibn Hayyân" (Eranos-Jahrbuch, XVIII, Zurique, 1950, pp. 47-114), p. 53, nota 15. O sal amoníaco já seria atestado nos textos cuneiformes assírios; cf. Campbell THOMPSON, Dictionnary of Assyrian Chemistry and Geology, p. 12. Ver também J.R. PARTINGTON, Origins and Development of Applied Chemistry (Londres, 1935), pp. 147, 317; H.E. STAPLETON, "The Antiquity of AIchemy" (Ambix, V, 1953, pp. 1-43), p. 34, nota 68. E. von LIPPMANN, Enstehung und Ausbreitungder Alchemie, III (Weinhein,1954), p.116.







[1] Le Yoga. Immortalité et Liberté, pp. 274 s.
[2] Ver os textos no nosso Le Yoga, pp. 281-282.
[3] Ver, de nossa autoria, Naissances mystiques, pp. 115 s. e Histoire des croyances et des idées religieuses, I, pp. 233 s. (Ed. brasileira: História das Crenças e das Idéias Religiosas, t. 1, vol. 2, Rio, Zahar, 1978.) Cf. Arion Rosu, "Considérations Sul une technique du rasâyana âyurvédico", Indo-Iranian Journal, 17, 1975, pp. 1-29, especialmente pp. 4-5. Sobre os regressus ad uterum no taoísmo e na alquimia chinesa, ver supra, pp. 93-94.
[4] Ver a bibliografia em M. Eliade, Le Yoga, pp. 278s., 398 s. Ver também Nota L.
[5] Praphula Chandra Ray, A History of Hindu Chemistry, li, p. 8. Nas páginas que se seguem, faremos referência aos textos reunidos e publicados por Sir P.C. Ray. Convém levar em conta que, como químico famoso e discípulo de Marcelin Berthelot, P.C. Ray dava preferência às obras que, a seu ver, tinham afinidades com a pré-química.
[6] P.C. Ray, I, p. 79 da introdução. Sobre a "purificação" e a "fixação" do mercúrio, cf. ibid., I, pp. 130 s.; sobre os meios de "matar" os metais em geral, ver ibid., I, pp. 246 s.
[7] Texto publicado por Ray, II, pp. 28-29. O Yogatattva Upanishad (73 s.) cita entre os siddhi iogas a faculdade de "transformar o ferro ou outros metais em ouro por meio de excrementos"; cf. Le Yoga, p. 138. Sobre o nasta-pista, cf. também Rasâmava, XI, 24, 197-198 (Ray, I, pp. 74-75) e Rasendracintâmani (ibid., 11, p. 16).
[8] Ver o fragmento publicado por Ray, 11. p. 21. Cf. o mito da "transmissão doutrinal" entre os siddha tântricos no nosso Le Yoga, pp. 305 s.
[9] Texto citado por Madhava no seu Sarva-darçàna-samgraha (edição Anandâshrana Series), p. 80.
[10] Cf. os fragmentos do Rasârnava em P.C. Ray, op. cit., I, p. 68. O texto integral do Rasãrnava foi editado por Ray na Biblioteca Indica (Calcutá).
[11] Cf. Ray, op. cit., vol. I, p. 59, texto do Siddha Yoga do médico Vrinda.
[12] Cf. os textos citados por Ray, I, p. 55
[13] A recitação de tais fórmulas constitui uma operação alquímica à parte, que o Rasaratnasamuccaya coloca entre os assuntos que se propõe expor.
[14] Ora, o diamante (vajra), assimilado ao "raio" e à essência de Buda, desempenha um papel considerável no simbolismo tântrico; cf. o nosso Le Yoga, pp. 254 s., 261 s., e passim.
[15] Encontra-se, por exemplo, uma boa descrição do amoníaco, Sal difundido pela alquimia iraniana e que, adotado pelo grande Jâbir ibn Hâyyan, não tarda a tornar-se de uso generalizado na alquimia árabe; ver a Nota M.
[16] Cf. Rasendracintâmani, em P.C. Ray, II, p. LXIV; outros textos, ibidem.