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As Religiões Tibetanas

In Eliade, M. História das Crenças e Mitos Religiosos. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

As Religiões Tibetanas

A "religião dos homens".
Tal como o hinduísmo e o cristianismo antigo e medieval, também a religião tibetana representa, no seu apogeu, uma síntese notável, fruto de um longo processo de assimilação e sincretismo. Até algumas décadas atrás, os estudiosos ocidentais, acompanhando de resto neste ponto os autores tibetanos, interpretavam a história religiosa do Tibete como o conflito entre a religião autóctone, o Bon, e o budismo indiano, que acabou por se impor sob a forma do lamaísmo. Pesquisas recentes, e em primeiro lugar a análise dos documentos encontrados na gruta de Tuen-huang (séculos VIII-X), revelaram uma situação mais complexa. Por um lado, percebe-se agora a importância e a coerência da religião autóctone, anterior ao Bon e à primeira propagação do budismo; ora, essa religião tradicional (chamada "a religião dos homens") não foi mencionada tanto pelos autores ban como pelos budistas.
Por outro lado, já se começa a conhecer melhor o caráter exótico e sincretista do Ban, e, em especial, suas fontes iranianas e indianas. Os documentos de que dispo- mos são, sem dúvida, mais recentes (a criação do alfabeto tibetano data do século VII) e refletem as conseqüências das polêmicas e .das contribuições recíprocas entre o budismo e o Ban. No entanto, sob o invólucro lamaico ou Ban, é possível distinguir os traços específicos da religião tradicional. Os historiadores tibetanos discriminavam a "religião dos deuses" (lha-chos) da "religião dos homens" (mi-chos); a primeira designava sucessivamente ora o Bon, ora o budismo; a segunda designava a religião tradicional.
Uma fonte importante para o conhecimento da "religião dos homens" - denominada Gcug (ou chos, "tradição, costume") - é constituída pelos "contos", isto é, por mitos cosmogônicos e genealógicos. Esses "contos" eram ritualmente narrados nas cerimônias nupciais, nas festas do Ano Novo, nas diversas competições em honra dos deuses do solo etc. Como em muitas religiões arcaicas, a recitação do mito da origem de uma sociedade, de uma instituição ou de um ritual, reatualizava a continuidade com o tempo mítico dos "primórdios" e, conseqüentemente, assegurava o êxito da operação empreendida. A narração correta dos mitos de origem era "um ato religioso necessário à manutenção da ordem do mundo e da sociedade".
Como em toda a parte aliás, os mitos de origem começam com a evocação da cosmogonia. O mundo foi criado pelos deuses celestes Phyva, imaginados como as montanhas do céu. (Voltaremos a examinar mais adiante a importância religiosa e o simbolismo das montanhas.) Alguns desses deuses-montanhas desceram à terra, trazendo consigo os animais, as plantas e, provavelmente, os primeiros seres humanos. Essa época paradisíaca, quando os homens viviam ao lado dos deuses, teria durado dez milênios. Um demônio, preso na nona camada subterrânea, conseguiu escapar e disseminou o mal sobre a terra. Os deuses retiraram-se para o céu e o mundo continuou a degenerar durante centenas de milhares de anos. Contudo, alguns homens ainda praticam o Gcug, enquanto aguardam a "era das impiedades", depois da qual aparecerá um mundo novo, em que os deuses retomarão à terra e os mortos ressuscitarão.
Trata-se, sem dúvida, do conhecido mito da "perfeição das origens", a que se segue a degenerescência progressiva e universal. Mas são também admissíveis influências indianas (os ciclos cósmicos compreendendo centenas de milhares de anos) e iranianas (o demônio que corrompe a Criação) .
O mundo tem uma estrutura tripartite: os deuses Phyva habitam a parte de cima, as divindades aquáticas e subterrâneas (Klu) a de baixo, e os homens o meio. O primeiro rei era um deus descido do céu que se unira a uma divindade-montanha; ele instaurava assim o modelo para os sete soberanos míticos seguintes. Os mitos sobre a origem do sítio habitado - variantes menores do mito cosmogônico - falam quer de um demônio vencido ou de um animal despedaçado, quer da hierogamia entre um deus (montanha, rocha ou árvore) e uma deusa (lago, fonte ou rio). Esse casal divino é às vezes confundido com os pais sobrenaturais do rei ou d'o herói. "Cada comunidade que habita determinada área se reconhece assim em seu antepassado e em seu lugar santo."
Na religião tradicional, o papel do rei era fundamental. A natureza divina do soberano manifestava-se pelo seu "brilho" e poderes mágicos. Os primeiros reis só permaneciam na terra durante o dia; à noite, retomavam ao Céu. Não conheciam a morte propriamente dita, mas em certo momento tornavam a subir definitivamente ao Céu por sua corda mágica, mu (ou dmu). Esses primeiros reis, refere-nos uma crônica bonpo, "tinham todos, na parte superior do crânio, uma corda mu de luz, corda distante (ou estendida), de cor amarelo-pálida (ou escura). No momento de sua morte, eles se dissipavam (como um arco- íris) a partir dos pés e fundiam-se na corda mu do sincipúcio. A corda mu de luz, por sua vez, fundia-se no céu."
É por essa razão que não havia túmulos reais antes do último soberano de origem divina, Digun; entregue ao orgulho e à cólera, este, por ocasião de um duelo, cortou sem querer a sua própria corda mu. Desde então, os cadáveres dos reis passaram a ser inumados; seus túmulos foram descobertos, e são conhecidas algumas cerimônias efetuadas durante os funerais. No entanto, alguns seres privilegiados - em primeiro lugar os santos e os magos - ainda conseguem subir ao Céu graças à sua corda mu.
Concepções tradicionais: Cosmo, homens, deuses.
O mito da corda mu cortada por Digun retoma, em outro contexto, a história da separação dos homens e dos deuses Phyva após a irrupção do mal no mundo. Muito maior, porém, é a sua importância para a história do pensamento religioso tibetano: por um lado, a corda mu exerce uma função cosmológica - une a Terra ao Céu como um axis mundi. Por outro lado, ela desempenha um papel central no sistema de homologia Cosmo-habitação-corpo humano. Por fim, a partir de certo momento, difícil de precisar, a corda mu volta a ser encontrada na fisiologia sutil e nos rituais que asseguram a libertação e a ascensão celeste da a1ma do morto.
As influências indianas e Bon são, por certo, evidentes. Entretanto, o caráter original desse complexo mítico- ritual e seu simbolismo não podem ser postos em dúvida. A homologia Cosmo-casa-corpo humano é uma concepção arcaica, abundantemente difundida na Ásia. Embora conhecesse essa homologia, o budismo não lhe atribuía valor salvifico (cf. § 160).
As montanhas são assimiladas à escada ou à corda mu do primeiro antepassado descido à Terra. Os túmulos dos reis são denominados "montanhas". Por outro lado, as montanhas sagradas - autênticos "deuses da região" ou "senhores do lugar" - são considerados como "Pilares do Céu" ou "Pregos da Terra", e "a mesma função pode ser assumida pelos pilares erigidos perto dos túmulos ou dos templos". O deus do terreno onde se ergue a casa é, também ele, designado como "Pilar do Céu" ou "Prego de fixação da Terra". O Céu e o mundo subterrâneo contêm pavimentos cujo acesso é tornado possível por uma "Porta do Céu" e por uma "Porta da Terra". Os pavimentos internos da casa são ligados por uma escada construída com um tronco de árvore. A "Porta do Céu" corresponde a abertura do telhado por onde penetra a luz e sai a fumaça; à "Porta da. Terra" corresponde a lareira.
Tal como a montanha sagrada - "deus da região" - se confunde com a escada mu que liga o Céu à Terra, no corpo humano um dos deuses protetores, e precisamente aquele chamado o "deus da região", encontra-se no topo da cabeça donde parte a corda mu (nos ombros residem o "deus guerreiro" e o "deus do homem"). A escada mu é igualmente denominada "escada do vento". Ora, o "cavalo do vento" representa a vitalidade de um homem. O "vento" é o princípio de vida análogo ao prâna dos indianos. "É ao mesmo tempo o ar que se respira e um fluido sutil no corpo." O "crescimento para o alto" faz-se por meio da corda mu. Essas concepções foram muito provavelmente elaboradas pelo sincretismo lamaísta. Seja como for, o processo utilizado pelos lamas para a libertação final da alma lembra a maneira dos reis míticos de se dissiparem na corda mu. Em outros termos, o santo é suscetível, no momento de sua morte, de repetir, em espírito, o que os reis míticos efetuavam ín concreto antes da desdita de Digun (concepção que lembra os mitos norte-asiáticos sobre a "decadência" do xamanismo atual: os primeiros xamãs subiam ao Céu em carne e osso; cf. § 246).
Voltaremos a estudar mais adiante o papel da luz nas tradições religiosas tibetanas. Acrescentemos, por enquanto, que ao lado da homologia Cosmo-casa-corpo humano, de que acabamos de falar, a religião tradicional implica ainda uma certa simetria entre homens e deuses. Por vezes, as "almas" (bla) não se distinguem dos "deuses" (lha); por serem pronunciados da mesma forma, os tibetanos confundem freqüentemente esses dois termos. Conhecem-se várias "almas" ou "vidas" exteriores, que residem nas árvores, rochedos ou objetos habitados pelos deuses. Por outro lado, como vimos, os deuses da região e os deuses guerreiros habitam não só os sítios naturais como também o corpo humano.
Em outros termos, como ser espiritual, o homem partilha de uma condição divina, e notadamente da função e do destino dos deuses de estrutura cósmica. Isso explica a importância das inúmeras competições rituais, desde as corridas de cavalos, os jogos atléticos e lutas diversas, até o concurso de beleza. as provas de arco e flecha, de ordenha de vacas e justas oratórias. As competições são realizadas sobretudo com a chegada do Ano Novo. O tema essencial do argumento do Ano Novo é constituído pela luta entre os deuses do Céu e os demônios, representados por duas montanhas. Como em outros argumentos análogos, o triunfo dos deuses assegurava a vitória da vida nova do ano que se inaugurava. "Os deuses assistem ao espetáculo e riem juntamente com os homens. Os jogos de enigmas e o relato de contos, bem como as narrativas épicas, têm um efeito sobre a colheita e o gado. Estando os deuses e os homens reunidos por ocasião das grandes festas, as oposições sociais se manifestam, mas ao mesmo tempo se resolvem. E o grupo, voltando a ligar-se a seu passado (origem do mundo, dos ancestrais) e a seu habitat (antepassados-montanhas sagradas), sente-se revigorado."
As influências iranianas no festival tibetano do Ano Novo são evidentes, mas o argumento mítico-ritual é arcaico: voltamos a encontrá-lo em numerosas religiões tradicionais. Trata-se, em suma, de uma concepção ampla- mente atestada no mundo, segundo a qual o Cosmo e a Vida, bem como a função dos deuses e a condição humana, são governados pelo mesmo ritmo cíclico, constituído de polaridades alternantes e complementares que se implicam mutuamente, mas que se resolvem de maneira periódica numa união-totalidade do tipo coincidentia oppositorum. Poder-se-ia comparar a concepção tibetana com a oposição entre o yang e o yin, e sua reintegração rítmica no tao (cf. § 132). De qualquer modo, a religião tradicional que os primeiros budistas encontraram no Tibete não era "um amálgama de noções mágico-religiosas anárquicas e dispersas [...], mas uma religião cujas práticas e ritos estavam enraizados num sistema estruturado, as- sente em conceitos básicos radicalmente opostos àqueles em que se firma o budismo".
O Bon: confrontações e sincretismo.
Tem-se inquirido, com razão, "sobre os motivos que levaram os historiadores (tibetanos) mais recentes a obliterarem a religião antiga, cujo próprio nome (Gcug) desapareceu, e a substituírem-na por uma religião, o Bon, cuja formação como religião constituída deve remontar ao século XI. No que se refere aos bon-po, o fenômeno é compreensível: eles estavam sem dúvida inclinados a fazer uma versão toda deles que realçasse o seu prestígio, atribuindo-lhes a mais recuada Antigüidade". Quanto aos historiadores budistas, os sacrifícios cruentos e as concepções escatológicas da religião autóctone lhes causavam repulsa; em conseqüência, assimilaram-nos às crenças e às práticas "mágicas" Ban.
É difícil descrever o Bon antes de apresentar a propagação do budismo no Tibete. Essas duas religiões entraram em choque desde o início, embora se influencias- sem reciprocamente; cada uma delas foi alternadamente protegida ou perseguida pelos soberanos; por fim, a partir do século XI, o "Bon modificado" (agyur Bon) utilizou a doutrina, o vocabulário e as instituições do lamaísmo. É certo, no entanto, que os ritualistas, os adivinhos e os "feiticeiros" bon-po operavam no Tibete antes da penetração dos missionários budistas. Por outro lado, apresentar o Bon neste ponto de nossa exposição permite-nos apreciar a multiplicidade e a importância dos elementos estranhos que contribuíram para o sincretismo religioso tibetano. Com efeito, pelo menos certas categorias de bon-po revelam uma origem exótica. Segundo a tradição, o "Bon estrangeiro" fora introduzido desde Zhangshung (Sudoeste do Tibete) ou desde Tazig (Irã), o que, por um lado, explica os elementos iranianos contidos em certas concepções Bon e, por outro, torna verossímeis as influências indianas (particularmente xivaítas) antes da penetração do budismo.
Os mais antigos documentos mencionam diferentes classes de bon-po: ritualistas, sacrificantes, adivinhos, exorcistas, mágicos etc. Não se trata, antes do século XI, de uma organIzação unitária e bem articulada de todos esses "especialistas do sagrado". Entre os seus instrumentos rituais, notemos as armações destinadas a capturar os demônios e, sobretudo, o tamborim de tipo xamânico, porquanto permitia aos mágicos subirem ao céu. O turbante de lã, distintivo específico dos bon-po, servia, segundo a tradição, para esconder as orelhas de asno do fundador lendário do Bon, Shenrab ni bo (detalhe valioso, pois denuncia sua origem ocidental; trata-se, na verdade, do tema de Midas). Ao lado de outros especialistas do sa- grado, os bon-po protegiam os soberanos e os chefes de clãs. Eles desempenhavam um papel importante nos funerais (em primeiro lugar, os funerais reais), guiavam as almas dos defuntos no além, eram tidos como capazes de evocar os mortos e de exorcizá-las.
Outros documentos, mais tardios, apresentam ainda diferentes cosmogonias e teologias, e até especulações metafísicas, mais ou menos sistematizadas. As influências indianas, particularmente budistas, são manifestas, o que não implica a inexistência prévia de toda "teoria"; é bem provável que os bon-po "especulativos" (genealogistas, mitógrafos, teólogos) coexistissem há muito tempo com os ritualistas e os "feiticeiros".
Os autores bon-po tardios referem da seguinte maneira a sua "história santa": o fundador do Bon seria Shenrab ni bo ("o homem-sacerdote-shen excelente"). Seu nascimento e biografia têm por modelo os de Sakyamuni e de Padmasambhava. Shenrab decidiu nascer num país ocidental (Zhangshung ou Irã). Um raio de luz branca penetrou, sob a forma de flecha (imagem do semen virile), na parte superior do crânio do pai, enquanto um raio de luz vermelha (representando o elemento feminino, o sangue) entrou na cabeça da mãe. Em outra versão, mais antiga, é o próprio Shenrab que desce do palácio celeste sob a forma de cinco cores (ou seja, como um arco-íris). Metamorfoseado em pássaro, ele pousa sobre a cabeça de sua futura mãe, e dois raios, um branco, o outro vermelho, oriundos de sua genitalia, penetram pelo crânio no corpo da mulher. Já em terra, Shenrab enfrenta o príncipe dos demônios, persegue-o e domina com seus poderes mágicos os demônios que encontra. Como penhor de sua submissão, estes oferecem-lhe objetos e fórmulas que contêm a essência de seus poderes; os demônios tornam-se assim guardiões da doutrina e das técnicas Bon. Isso equivale a dizer que Shenrab revela aos bon-po as preces que estes deviam dirigir aos deuses e os meios mágicos para exorcizar os demônios. Depois de ter estabelecido o Bon no Tibete e na China, Shenrab retira-se do mundo, pratica a ascese e, tal como Buda, alcança o Nirvana. Deixa, porém, um filho que, durante três anos, propaga o conjunto da doutrina.
Há um consenso em considerar a personagem lendária que se esconde sob o nome de Shenrab como o criador o sistema doutrinário Bon, no sentido de que reuniu organizou uma quantidade apreciável e contraditória e costumes, rituais, tradições mitológicas, encantamentos fórmulas mágicas - "não tanto de textos literários, pois estes, antes de sua época, só existiam em pequeno número. O cânone Bon constitui-se a partir do século XI, grupando os textos que se julga terem sido ocultados, durante as perseguições dos reis budistas, e "redescobertas" mais tarde. Sua forma definitiva data do século XV, quando se reuniram os textos atribuídos a Shenrab que se acreditava terem sido traduzidos da língua do Zhangshung) nos 75 volumes do Kanjur, e seus comentários nos 131 volumes do Tanjur. A classificação e os títulos dessas obras são evidentemente tirados do Cânone lamaísta. A doutrina segue de perto a do budismo: "lei a impermanência, do encadeamento dos atos que engendram o ciclo do samsâra. Também para o Bon, o objetivo que se colima é o Despertar, o estado de Buda, ou antes, sua forma mahayânica, a Vacuidade". Tal como entre os monges budistas "antigos", isto é, os discípulos e Padmasambhava (ver mais adiante, § 315), a doutrina Bon é articulada em nove "veículos" (ou "Caminhos"). Os três últimos Veículos são idênticos nas duas religiões; os seis primeiros apresentam muitos elementos comuns, mas, entre os bon-po, eles comportam ainda uma série de crenças e práticas mágicas que lhes são específicas.
Várias cosmogonias são atestadas nos escritos ban. Citemos, entre as mais importantes, a criação a partir de um ovo primordial, ou dos membros de um Gigante antropomorfo, de tipo Purusha (tema conservado na epopéia de Gesar), ou, finalmente, como a obra indireta de um deus otiosus do qual emergem dois princípios radicalmente opostos. A influência indiana é evidente nas duas primeiras cosmogonias. Para a terceira, não havia no começo senão uma pura potencialidade entre Ser e Não-Ser, que confere, porém, a si mesma o nome de "Criado, Mestre do Ser". Desse "Mestre" emanam duas luzes, branca e negra, que geram dois "homens", um branco e o outro negro. Este último, o "Inferno Negro", semelhante a uma lança, é a encarnação do Não-Ser, princípio da negação. autor de todos os males e de todas as calamidades. O homem branco, que se autoproclama "Mestre que ama a Existência", é a encarnação do Ser e princípio de tudo o que é bom e criador no mundo. Graças a ele, os deuses são venerados pelos homens e combatem os demônios e os representantes do mal. Concepção que lembra a teologia zurvanita (ci. § 213), transmitida provavelmente pelos maniqueístas da Ásia central.
Salientemos uma vez mais o caráter sincretista do Bon, não só tradicional como "modificado". Como veremos, o lamaísmo retoma e desenvolve o mesmo processo. Na época histórica, o sincretismo parece caracterizar a criatividade religiosa do gênio tibetano.
Formação e desenvolvimento do Lamaísmo.
Segundo a tradição, o budismo teria sido estabeleci- do no Tibete pelo rei Srong-bstan sgam-po (620?-641), considerado ulteriormente uma emanação do Buda Avalokitesvara. Mas a eventual contribuição desse soberano para a propagação da Lei é difícil de determinar. Sabe-se que ele seguia, pelo menos em parte, as antigas práticas religiosas. Por outro lado, parece certo que a mensagem budista era conhecida em certas regiões do Tibete antes do século VII.
Como religião de Estado, o budismo é atestado pela primeira vez nos documentos oficiais pertencentes à época do rei Khri-ston lde-bcan (755-797?). Esse soberano, proclamado como a emanação de Mânjusri, convidou ao Tibete os grandes mestres indianos Sântarakshita, Kamalashila e Padmasambhava. Duas tendências digladiavam-se pela proteção do rei: a "escola indiana", que ensinava um caminho gradual da libertação, e a "escola chinesa", que propunha técnicas cuja meta era a iluminação instantânea (chang; japonês zen). Após assistir à apresentação e à defesa de seus D1étodos respectivos (792- 794), o rei escolheu a tese indiana. Essa famosa controvérsia teve como palco o mosteiro Bsam-yas, fundado por Khri-ston no início do seu reinado; foi o primeiro de uma longa série de estabelecimentos monásticos que viriam a ser construídos durante muitos séculos. Foi ainda Khri-ston quem concedeu propriedades aos mosteiros, inaugurando assim a evolução que culminará na teocracia lamaísta.
Seus sucessores consolidaram o budismo como religião oficial. No século IX, os monges desfrutam uma posição privilegiada na hierarquia política e recebem propriedades cada vez mais importantes. O rei Ral-pa-can (815-838) provocou, com seu excesso de zelo em favor dos monges, a oposição dos nobres. Foi assassinado, e seu irmão, que lhe sucedeu (838-842), deflagrou uma violenta perseguição aos budistas: segundo os cronistas tardios, era ele um vigoroso defensor do Bon. Entretanto, também foi assassinado, e após sua morte o país, repartido em principados que se guerreavam continuamente, mergulhou na anarquia. Durante mais de um século, o budismo permaneceu na ilegalidade. Os templos foram profa- nados, os monges ameaçados de morte e compelidos a se casar ou a abraçar o Ban. As instituições eclesiásticas são postas por terra e as bibliotecas destruídas. Sobrevive, porém, certo número de monges solitários, sobretudo nas províncias marginais. Esse período de perseguição e anarquia favorece a difusão da magia e das práticas tântricas de tipo orgiástico.
Por volta de 970, um rei budista do Tibete ocidental, Ye-çes'od, envia Rin c'en bzan po (958-1055) à Caxemira, em busca dos mestres indianos. Com ele tem início a segunda difusão do budismo. Rin c'en organiza uma escola e realiza a tradução dos textos canônicos e a revisão das antigas traduções. Em 1042, um grande mestre tantrista, Atisa, chega ao Tibete ocidental. Procede à iniciação de Rin c'en, já idoso, e de seus discípulos; entre estes últimos, Brom-ston, que se torna o representante mais autorizado da tradição ensinada por Atisa. Trata-se de uma autêntica reforma que visa a restaurar as estruturas originais do budismo: uma rigorosa conduta moral dos monges, o celibato, a ascese, os métodos tradicionais de meditação etc. O papel do guru, em tibetano lama (bla-ma) , adquire uma importância considerável. Essa reforma de Atisa e seus sucessores estabelece as bases do que se tornará mais tarde a escola dos "Virtuosos", Gelugpa (Dgelugs-pa). Mas um certo número de religiosos, que invocam a autoridade de Padmasambhava, não aceitam essa reforma. Com o tempo, eles se definirão como os "Antigos", Nyingmapa (Rnin-ma-pa).
Entre os séculos XI e XIV intervém uma série de grandes mestres espirituais, criadores de novas "escolas" e fundadores de mosteiros que adquiriram notoriedade. Os monges tibetanos viajam à Índia, à Caxemira, ao Nepal, em busca dos renomados guru, na esperança de serem iniciados nos mistérios (sobretudo tântricos) da libertação. É a época dos famosos iogues, místicos e mágicos Naropa, Marpa, Milarepa. Eles inspiram e organizam diferentes "escolas", algumas das quais, com o passar do tempo, vão cindir-se em vários ramos. Não é preciso enumerá-las: basta-nos citar o nome d'e Tsong-kha-pa (1359- 1419), vigoroso reformador na linha de Atisa e fundador da escola do grande futuro, cujos adeptos recebem o no- me de "Novos" ou "Virtuosos" (Gelugpa). O terceiro sucessor de Tsong-kha-pa adotou o título de Dalai Lama (1578). Sob o quinto Dalai Lama (1617-1682), os Gelugpa conseguiram um triunfo definitivo. Desde então, e até nossos dias, o Dalai Lama é reconhecido como o único chefe religioso e político do país. Os recursos dos mosteiros e o grande número de monges, ao mesmo tempo letra- dos e guias espirituais, asseguraram a força e a estabilidade da teocracia lamaica.
Quanto aos "Antigos", os Nyingmapa, reconhecem, além da transmissão oral ininterrupta da doutrina, as revelações obtidas pela inspiração extática de um religioso eminente, ou conservadas em livros que se acredita terem sido "escondidos" durante as perseguições e "descobertos" posteriormente. Como entre os bon-po, a grande época das "descobertas" de textos estende-se, entre os "Antigos", do século XI ao XIV. Um monge extremamente dotado e empreendedor, Klon-'chen (século XIV), organizou o conjunto das tradições Nyingmapa num sistema teórico bem articulado. Paradoxalmente, o verdadeiro renascimento dos "Antigos" começa a partir do século XVII. No entanto, em que pese às diferenças de ordem filosófica e, sobretudo, à variedade dos rituais, não houve uma legítima ruptura entre os "Antigos" e os "Novos". No século XIX configura-se um movimento de tipo eclético, que almeja a integração de todas as "escolas" budistas tradicionais.
Doutrinas e práticas Lamaicas.
Os tibetanos não se consideram inovadores em relação à doutrina. Cumpre, porém, ter em conta que, "enquanto o budismo desaparecia na Índia no início do século XIII, não deixando mais do que textos atrás de si, continuou a florescer no Tibete, mantendo viva a sua tradição". Os primeiros missionários budistas chegaram após o triunfo na Índia do Grande Veículo (Mahâyâna; cf. §§ 187 s.). As escolas dominantes eram o Mâdhyamika, a "Via média" fundada por Nâgârjuna (século III), a Yogacâra ou Vijnanaváda estabelecida por Asanga (séculos IV-V), e finalmente o Tantra ou Vajrayâna (o "Veículo de Diamante"). Durante os cinco séculos seguintes, todas essas escolas enviaram seus representantes ao Tibete, e concorreram para a formação do lamaísmo.
Simplificando, poder-se-ia dizer que os "reformados" Gelugpa seguem o ensinamento de Nâgârjuna, utilizando a lógica e a dialética como meio de realizar a Vacuidade e, portanto, de obter a salvação (cf. t. II, vol. 1, pp. 243 s.), enquanto os "Antigos" seguem em primeiro lugar a tradição fundada por Asanga, que atribuía uma importância decisiva às técnicas ióguicas de meditação. Esclareçamos, no entanto, que essa distinção não implica o menosprezo da dialética entre os "Antigos", nem a ausência da ioga no ensinamento dos "Reformados". Quanto aos rituais tântricos, embora praticados sobretudo pelos Nyingmapa, não eram ignorados pelos Gelugpa.
Em suma, os religiosos tinham a opção entre uma via imediata e uma via progressiva. Mas uma e outra pressupõem que o Absoluto (= a Vacuidade) só pode ser apreendido pela supressão das "dualidades": sujeito (pensante)-objeto (pensado), mundo fenomenal-realidade última, samsâra-nirvâna. Segundo Nâgârjuna, há duas espécies de verdade: a verdade relativa, convencional (samvrtti), e a verdade absoluta (paramântha). Na perspectiva da primeira, o mundo fenomenal, ainda que ontologicamente irreal, existe de um modo inteiramente convincente na experiência do homem comum. Na perspectiva da verdade absoluta, o espírito descobre a irrealidade de tudo o que parece existir, mas essa revelação é verbalmente inexprimível. Uma tal distinção entre as duas verdades - convencional e absoluta - permite preservar o valor da conduta moral e da atividade religiosa dos fiéis leigos.
As duas espécies de verdade estão relacionadas com a.s diferentes categorias de seres humanos. Sem dúvida, cana indivíduo possui, em estado virtual, a natureza de buddha, mas a realização da budeidade depende da equação cármica de cada um, resultado de suas inumeráveis existências anteriores. Os fiéis leigos, condenados à verdade convencional, envidam esforços para acumular méritos por meio de dádivas aos monges e aos pobres, de muitos rituais e peregrinações, da recitação da fórmula om mani padme húm. Para eles, "é sobretudo o ato de fé que conta na recitação, e essa fé permite uma espécie de concentração e destruição do Ego". Quanto aos religiosos, sua situação difere de acordo com o grau de sua perfeição espiritual. Um certo número de monges compartilha ainda a perspectiva da verdade convencional. outros, ao escolherem o método rápido da iluminação, esforçam- se por realizar a identificação do relativo e do absoluto, do samsâra e do nirvâna, ou seja, empenham-se em apreender de maneira experimental a realidade última, a Vacuidade. Alguns proclamam através do seu comportamento excêntrico, e até aberrante, que transcenderam as "dualidades" falaciosas da verdade convencional.
Tal como na Índia (cf. § 332), são sobretudo as diversas escolas tântricas que aplicam, e transmitem no maior segredo, as técnicas de meditação e os rituais que vis'am à realização da coincidentia oppositorum em todos os níveis da existência. Entretanto, todas as escolas tibetanas aceitam os conceitos fundamentais do budismo mahâyâna, em primeiro lugar a idéia de que a Alta Ciência (prajnâ) , princípio feminino e passivo, está intimamente ligada à Prática, ou "Meio" (upâya), princípio masculino e ativo; é graças à "prática" que a "sapiência" pode manifestar-se. Sua união, obtida pelo monge após rituais e meditações específicas, concede a Grande Felicidade (mahâsukha).
Um dos traços característicos do lamaísmo é a importância capital do guru. Sem dúvida, tanto na Índia bramânica e hinduísta, como no budismo primitivo, o mestre era considerado pai espiritual do discípulo. Mas o budismo tibetano eleva o guru a uma posição quase divina: é ele que confere a iniciação ao discípulo, explica-lhe o sentido esotérico dos textos, comunica-lhe um mantra secreto e todo-poderoso. O mestre trata de saber em primeiro lugar qual é a "paixão dominante" do neófito, para descobrir qual a sua divindade tutelar e, portanto, a espécie de Tantra que lhe convém.
Quanto ao discípulo, a fé em seu guru deve ser absoluto. "Venerar um único pêlo do mestre é um mérito maIor do que venerar toa.os os buddha dos três tempos (passado, presente e futuro)." Durante a meditação, o discípulo identifica-se com o seu mestre, ele próprio identificado com a divindade suprema. O mestre submete o discípulo a numerosas provas, a fim de descobrir a qualidade e os limites da sua fé. Marpa leva ao desespero seu discípulo Milarepa, humilhando-o, insultando-o e espancando-o; não logra, porém, abalar a sua fé. Colérico, injusto e violento, Marpa comove-se de tal forma diante da fé de seu discípulo que chora freqüentemente às escondidas.
A atividade religiosa dos monges consiste essencialmente numa série de exercícios espirituais de tipo ióguico-tântrico, o mais importante dos quais é a meditação. O religioso pode utilizar certos objetos exteriores como suporte da meditação: imagens das divindades mandala etc. Mas, tal como na Índia, sobretudo no tantrismo (§ 333), as divindades representadas devem ser interiorizadas, isto é, "criadas" e projetadas como que numa tela pelo monge. Obtém-se primeiro o "vazio", donde, a partir de uma sílaba mística, emerge a divindade. O monge identifica-se em seguida com essa divindade. "Tem-se então um corpo divino, luminoso e vazio; indissoluvelmente fundido na divindade, participa-se - através dela - da Vacuidade." É nesse momento que a divindade está realmente presente. "Para prová-lo, relata-se: por exemplo, que depois de uma tal evocação pela meditação, as divindades representadas sobre a pintura saí- ram dela, deram uma volta e regressaram: pôde-se, então, verificar que suas vestes e acessórios estavam em desordem sobre a pintura. A contemplação do mestre Bodhisattva em Samye foi tão intensa que tornou as divindades 'objetivamente' presentes aos olhos de todo o mundo: as estátuas saíram do templo, deram uma volta em torno dele e regressaram a seus lugares."
Certas meditações requerem o domínio das técnicas do Hathayoga (§ 143); por exemplo, a produção do calor (gtum-mo), que permite aos ascetas secarem sobre seus corpos nus e em plena neve, durante uma noite de inverno, uma grande quantidade de lençóis ensopados. Outras meditações do monge visam à obtenção dos poderes ióguicos (sidhi, ci § 195) de tipo faquírico; por exemplo a transferência do seu "espírito" no corpo de um mo~to, em outras palavras, a animação do cadáver. A mais aterradora meditação, o gcod ("cortar"), consiste em oferecer sua própria carne para ser devorada pelos demônios. "A força da meditação faz surgir em plena luz uma deusa sabre; ela salta sobre a cabeça daquele que oferece o sacrifício, decapita-o e esquarteja-o; então os demônios e os animais ferozes precipitam-se sobre esses restos palpitantes, devoram-lhes a carne e bebem-lhes o sangue. As palavras pronunciadas fazem alusão a certos jâtakas, que narram como Buda, em outras encarnações, entregou sua própria carne para servir de pasto a animais esfaimados e demônios antropofágicos."
Essa meditação lembra o esquartejamento iniciatório do futuro xamã por demônios e pelas almas dos antepassados. Não é esse, aliás, o único exemplo de integração, no lamaísmo, das crenças e técnicas xamanistas. Certos lamas-feiticeiros lutam entre si recorrendo a seus poderes mágicos, tal como o fazem os xamãs siberianos. Os lamas dominam a atmosfera exatamente como os xamãs, voam através dos ares etc. Entretanto, apesar da sua estrutura xamanista, as meditações aterradoras dos monges tibetanos são dotadas de sentidos e valores espirituais de nível inteiramente distinto. A "contemplação do seu próprio esqueleto", exercício especificamente xamânico, visa, no lamaísmo, à experiência extática da irrealidade do mundo e do eu. Para citarmos apenas um exemplo, o monge deve ver-se como um "esqueleto branco, brilhante e enorme, donde saem chamas tão grandes que preenchem o Vazio do Universo".
Ontologia e fisiologia Mística da Luz.
Essa capacidade de assimilar e revalorizar diversas tradições, ainda que indígenas e arcaicas, ou estrangeiras e recentes, é uma característica do gênio religioso tibetano. Apreciaremos os resultados de um tal sincretismo examinando algumas concepções e rituais relacionados com a Luz. Já observamos o papel da Luz quando apresentamos o mito da corda mu e certas cosmogonias autóctones ou ban. Giuseppe Tucci considera a importância atribuída à Luz ("quer como princípio gerador, quer como símbolo da realidade suprema ou como revelação visível, perceptiva, dessa luz, donde tudo provém e que está presente em nós' mesmos"), como a característica fundamental da experiência religiosa tibetana. Para todas as escolas lamaístas, o Espírito (sems) é luz, e essa identidade constitui a base da soteriologia tibetana.
Lembremos, porém, que na Índia a luz era considerada como a epifania do Espírito e da energia criadora em todos os níveis cósmicos, e isso desde o Rig Veda (cf. § 81). A homologia: divindade, espírito, luz, semen virile, acha-se claramente articulada nos Brâhmanas e nos Upanixades. A aparição dos deuses, bem como o nascimento e a iluminação de um Salvador (Buda, Mahâvira), manifestam-se através de um derrame de luz sobrenatural. Para o budismo Mahâyâna, o Espírito (= o Pensamento) é "naturalmente luminoso". Por outro lado, já se conhece o papel da Luz nas teologias iranianas (cf. § 215). Poder-se-ia, portanto, presumir que a identidade Espírito (sems) -Luz, tão importante no lamaísmo, seria a conseqüência das idéias oriundas da Índia e, indireta- mente, do Irã. Convém examinar, contudo, o processo de reinterpretação e revaloração, no interior do lamaismo, de um mito pré-budista sobre a origem do homem a partir da Luz.
Segundo uma tradição antiga, a Luz Branca, deu origem a um ovo, do qual saiu o Homem primordial. Uma segunda versão relata que o Ser primordial nasceu do vazio e resplandecia de Luz. Uma outra tradição, por fim, explica como se efetuou a passagem do Homem-Luz para os seres humanos atuais. No começo, os homens eram assexuados e desprovidos de desejos sexuais; tinham a Luz em si mesmos, e a irradiavam. O Sol e a Lua não existiam. Com o despertar do instinto sexual, surgiram os órgãos genitais - e então o Sol e a Lua apareceram no Céu. No início, os homens multiplicavam-se da seguinte maneira: a luz que emanava do corpo do macho penetrava, iluminava e fecundava o útero da mulher. O instinto sexual satisfazia-se tão-somente com a. visão. No entanto, os homens degeneraram e começaram a se tocar com as mãos, até que por fim descobriram a união sexual.
Segundo tais crenças, a Luz e a Sexualidade são dois princípios antagônicos: quando uma delas predomina, a outra não pode manifestar-se, e vice-versa. Isso equivale a dizer que a Luz está contida (ou melhor: aprisionada) no semen virile. Como acabamos de lembrar, a consubstancialidade do espírito (divino), da luz e do semen virile é sem dúvida uma concepção indo-iraniana. Mas a importância da Luz na mitologia e teologia tibetanas (a corda mu etc.) sugere uma origem autóctone para esse tema antropogônico, o que não invalida a sua reinterpretação ulterior, decorrente, tudo o indica, de influências maniqueístas.
Na verdade, segundo o maniqueísmo, o Homem primordial, formado de cinco Luzes, foi vencido e devorado pelos Demônios das Trevas. Desde esse momento, cinco Luzes se acham presas nos homens, criações demoníacas, e particularmente no esperma (cf. § 233). Voltamos a encontrar a luz quíntupla numa interpretação indo-tibetana do maithuna, união ritual que imita o "jogo" divino, pois não deve terminar por uma emissão de sêmen (§ 334). Ao comentarem o Guhyasamâja Tantra, Candrakirti e Ts'on Kapa insistem neste detalhe: durante o mithuna, efetua-se uma união de ordem mística, graça a qual o casal obtém a consciência nirvânica. No homem, essa consciência nirvânica, denominada bodhicitta, "Pensamento de Despertar", manifesta-se por - e de certo modo é idêntica a - uma gota (bindu), que desce do topo da cabeça e enche os órgãos sexuais com um jato de quíntupla luz. Candrakirti prescreve: "Durante a união, cumpre meditar sobre o vajra (membrum virile) e o padma (útero) como estando internamente repletos de quíntupla luz." A influência maniqueísta parece evidente na imagem da quíntupla luz. Observa-se uma outra analogia (mas que não implica necessariamente o empréstimo) entre a injunção tântrica de não emitir o esperma e a defesa maniqueísta de engravidar a mulher.
No momento da morte, a "alma" dos santos e dos iogues sai voando pelo sincipúcio, como uma flecha de luz, e desaparece pela "Abertura de fumaça do Céu". Nos mortais comuns, o lama abre um orifício no topo da cabeça do moribundo, a fim de facilite.r o vôo da "alma". Na fase final da agonia e durante vários dias após o óbito, o lama lê o Bardo Thodol (= O Livro Tibetano da Morte) em intenção do falecido. O lama adverte-o de que será bruscamente despertado por uma luz ofuscante: é o encontro com o seu próprio eu que é, ao mesmo tempo, a realidade última. O texto prescreve ao morto: "Não se deixe intimidar, nem aterrorizar, é o esplendor da sua própria natureza." Da mesma forma, o fragor do trovão e outros fenômenos aterradores "não têm como lhe causar mal. Você é incapaz de morrer. Basta reconhecer que essas aparições são suas próprias formas de pensamento. Reconheça tudo isso como sendo o bardo (ou seja, o estado intermediário)". Mas, condicionado por sua situação cármica, o morto não sabe pôr em prática esses conselhos. Embora perceba uma sucessão de Luzes puras – representando a libertação, a identificação com a essência do Buda -, o defunto deixa-se atrair pelas Luzes impuras, que simbolizam uma forma qualquer de pós- existência, em outra.s palavras, o retorno à terra.
Cada homem tem oportunidade de alcançar a liberação no momento de sua morte: basta reconhecer-se na clara Luz que experimenta nessa ocasião. A leitura em foz alta do Livro da Morte constitui um último apelo; nas é sempre o defunto que decide da sua sorte. Cabe-lhe ter ânimo para escolher a clara Luz e força para resistir às tentações da pós-existência. Em outros termos, a morte oferece uma nova. possibilidade de ser iniciado, mas essa iniciação, como qualquer outra, contém uma série de provas que o neófito é obrigado a enfrentar e vencer. A experiência da Luz post-mortem constitui a ultima, e talvez a mais difícil, prova iniciatória.
Atualidade de certas criações religiosas tibetanas.
O Bardo Thodol é sem dúvida o texto religioso tibetano mais conhecido no mundo ocidental. Traduzido e publicado em inglês em 1928, foi sobretudo depois de 1960 que ele se tornou de certo modo o livro de cabeceira de um número considerável de jovens. O fenômeno é significativo para a história da espiritualidade ocidental contemporânea. Trata-se de um texto profundo e difícil, sem similar em nenhuma outra literatura religiosa. O interesse que ele desperta, não apenas entre psicólogos, historiadores e artistas, mas principalmente entre os jovens, é sintomático: indica ao mesmo tempo a dessacralização quase total da morte nas sociedades ocidentais contemporâneas, e o desejo exasperado de revalorizar religiosa ou filosoficamente - o ato que, ao mesmo tempo em que a questiona, põe termo à existência humana.
De proporções mais modestas, mas igualmente significativa, é a popularidade crescente do Shambala, país misterioso onde, segundo a tradição, foram conservados os textos do Kâlacakra. Existem vários Guias para Sharnbala, redigidos pelos lamas, mas trata-se primordialmente de uma geografia mítica. De fato, os obstáculos descritos nos Guias (montes, rios, lagos, desertos, monstros diversos) lembram os itinerários para as regiões fabulosas mencionadas em tantas mitologias e folclores. E mais: afirmam alguns autores tibetanos que é possível chegar a Shambala após uma viagem efetuada em sonho ou em êxtase. Também desta vez, o fascínio do velho mito de uma região paradisíaca e no entanto real revela uma nostalgia característica das sociedades ocidentais dessacralizadas. Lembre-se o êxito espetacular do medíocre romance Horizonte Perdido e, sobretudo, do filme que ele inspirou.
Depois do Bardo Thodol, a única obra tibetana que teve certo sucesso no Ocidente foi a Vida de Milarepa, escrito aproximadamente no final do século XII e traduzido para o francês por J. Bacot (1925) e para o inglês por Ewans-Wentz (1938). Infelizmente, a obra poética de Milarepa (1052-1135) apenas começa a ser conhecida. A primeira tradução completa foi publicada em 1962. Tanto a vida como os poemas de Milarepa apresentam um interesse excepcional. Esse mágico, místico e poeta revela admiravelmente o gênio religioso tibetano. Milarepa começa por dominar a magia para vingar-se de seu tio; após um árduo e longo aprendizado sob a orientação de Marpa, retira-se para uma gruta, alcança a santidade. e conhece as beatitudes de um "liberto-em-vida". Em seus poemas - que adquirirão celebridade quando forem traduzidos por poetas -, ele renova a técnica dos cantos (doha) dos tantristas indianos, adaptando-a aos cantos indígenas. "Ele fez isso certamente por prazer, mas também com o intuito de vulgarizar desse modo o pensamento budista e de torná-lo mais familiar, introduzindo-o nos cantos populares."
Por fim, é provável que a Epopéia de Gesar venha a ser proximamente descoberta, não só pelos comparatistas, como ainda pelo público letrado. Embora a redação definitiva pareça datar mais ou menos do final do século XIV, o mais antigo ciclo épico é atestado três séculos antes. O tema central é constituído pela transformação do herói. Através de numerosas provas, o rapaz feio e mau transforma-se num guerreiro invencível e finalmente no glorioso soberano Gesar, vencedor dos demônios e dos reis dos quatro quadrantes do mundo.
Se evocamos as ressonâncias no Ocidente de algumas criações religiosas tibetanas, foi porque, após a ocupação chinesa, um grande número de monges e eruditos tibetanos se acha espalhado por todo o mundo. Essa diáspora poderia, com o tempo, modificar radicalmente, ou mesmo apagar, a tradição religiosa tibetana. Mas, por outro lado, o ensinamento oral dos lamas poderia ter, no Ocidente, um efeito comparável ao êxodo dos sábios bizantinos carregados de valiosos manuscritos, depois da queda de Constantinopla.
A síntese religiosa tibetana apresenta certa analogia com o hinduísmo medieval e o cristianismo. Nos três casos, trata-se de um encontro entre uma religião tradicional (isto é, a sacralidade de estrutura cósmica), uma religião de salvação (o budismo, a mensagem cristã, o vixenuísmo) e uma tradição esotérica (tantrismo, gnosticismo, técnicas mágicas). A correspondência é ainda mais notável entre o Ocidente medieval dominado pela Igreja romana e a teocracia lamaica.